terça-feira, 19 de junho de 2018

Os pinguins que derrubaram dois ministros

A Reserva Nacional Pinguim de Humboldt, último grande bastião da espécie

"Já comi pinguim, em escabeche”, diz o pescador Salvador Vergara, de 49 anos, gritando para conseguir ser ouvido por causa do barulho do motor de sua embarcação. “Com cebolinha é delicioso”, recorda. Vergara circunavega a ilha chilena de Choros, no coração da Reserva Nacional Pinguim de Humboldt, o último grande bastião da espécie no planeta. Em 1990, quando a reserva foi criada, esses pequenos pinguins, com uma faixa preta no peito, eram servidos refogados ou em escabeche e estavam à beira da extinção. Hoje se recuperaram até chegar a 16.000 exemplares e sua força é tamanha que conseguiram algo inédito: a demissão de dois ministros.
Vergara vive em Punta de Choros, uma tranquila comunidade de pescadores na costa norte do Chile. É um lugar único no mundo. Por suas águas passa a corrente de Humboldt, uma estrada submarina que carrega nutrientes da Antártida até o Equador. Diante das três ilhas que formam a Reserva Nacional Pinguim de Humboldt, a água das ricas correntes profundas ascende à superfície, dando de presente um banquete para um grande número de espécies oceânicas. Na reserva vivem golfinhos-nariz-de-garrafa, lontras felinas (uma lontra bem pequena) e leões marinhos. E por suas águas passa o gigante do mar: a baleia azul, de até 180 toneladas, acompanhada por baleias-comuns e baleias-jubarte. Mas esse paraíso, segundo alerta Vergara, está ameaçado. “Vivemos da pesca e do turismo. Se vier o Dominga, ficaremos de braços cruzados”, afirma.
 
O pescador Salvador Vergara circunavega a ilha chilena de Choros
 
Dominga é um projeto da empresa chilena Andes Iron para criar uma gigantesca mina a céu aberto, capaz de produzir por ano 12 milhões de toneladas de concentrado de ferro e 150.000 toneladas de concentrado de cobre, que abasteceriam o voraz mercado chinês por meio de um novo porto com um atracadouro de 1,2 quilômetro. A palavra Dominga está pintada em todas as paredes de Punta de Choros: “Vamos proteger o mar do projeto assassino Dominga”, “Não ao Dominga: Punta de Choros não se vende”. Caminho de passagem dos povos do interior, a apenas alguns quilômetros da costa o discurso sofre uma metamorfose. Sobre o asfalto da Rodovia Panamericana – que cruza o Chile de norte a sul – há faixas penduradas nas pontes: “Mineração e meio ambiente podem coexistir. Sim ao Dominga”, “Contra a desnutrição, sim ao Dominga”.
A comuna de La Higuera, à qual pertence a reserva de pinguins, está dividida em duas. A população da costa vive da pesca e dos 80.000 turistas que visitam o lugar todos os anos. A mina, denunciam, acabaria com seu modo de vida; os habitantes do interior, mais pobres, veem o projeto de mineração como uma tábua de salvação. Na Comuna de La Higuera, com 4.600 habitantes, o porcentual de população em situação de pobreza supera 22%, quase o dobro do restante do país. A mina de ferro, com um investimento de 2,5 bilhões de dólares (9,8 bilhões de reais), daria trabalho a cerca de 1.500 pessoas durante sua vida útil, uns 27 anos.
“Obviamente, poderia haver um derramamento de hidrocarbonetos ou de óleos, poderiam ser introduzidas espécies exóticas invasoras, e isto poderia afetar a nidificação deste pinguim e a vida dos mamíferos marinhos”, alerta Pablo Arróspide, administrador da Reserva Nacional Pinguim de Humboldt. “A reserva é um motor econômico bastante importante para a região, já que o turismo cresceu exponencialmente nos últimos anos”, festeja.
 
Cartaz contra a mina Dominga na localidade de Punta de Choros
 
A mina Dominga passou a ser uma ameaça constante, com assédio, com pressões a nossos associados, oferecendo-lhes alguns benefícios, como motores e barcos, e praticamente dividindo a nossa comunidade. Fez um trabalho de dividir para poder reinar”, afirma o pescador Óscar Avilez, enquanto passeia por uma praia coberta por conchas de loco, um suculento molusco da região. Avilez é porta-voz da Cooperativa Pesqueira Punta Norte. Sua organização, com 150 associados, exporta todos os anos um milhão de unidades de loco, principalmente para o mercado asiático, segundo suas cifras.
Sobre um barco azul e rodeado pelas duas filhas e um peludo filhote de cachorro, Josué Ramos, presidente da Cooperativa Los Chorros, também é taxativo: “Nós como pescadores somos contra este projeto da mineradora Dominga porque eles contemplam um megaporto. E no Chile a história dos megaportos que abastecem as mineradoras tem puras catástrofes em nível nacional”.
O geólogo Armando Siña, vice-presidente da Andes Iron, sorri quando escuta as enormes críticas a seu projeto. “Antes de mais nada, estamos a 30 quilômetros da Reserva Nacional Pinguim de Humboldt. É uma distância bastante considerável”, afirma no lugar desabitado no qual a mina seria criada. A empresa organizou uma campanha publicitária com o slogan “O melhor projeto de mineração do mundo”. No porto de Dominga, argumenta Siña, só chegariam 56 barcos por ano, sem carregar nem descarregar combustível. “A 10 quilômetros da costa já há uma rota de navegação pela qual passam 1.600 navios por ano”, diz.

Lugar em que seria construída a mina Dominga, na Comuna de La Higuera

A Reserva Nacional Pinguim de Humboldt se converteu no epicentro de uma guerra mundial: a travada entre o desenvolvimento econômico e a conservação do meio ambiente. Em agosto de 2017 houve sangue nessa batalha. Depois de uma série de vereditos contraditórios das diferentes autoridades ambientais, a mina Dominga chegou ao Comitê de Ministros. O Governo da socialista Michelle Bachelet rejeitou o projeto, mas dois ministros – Rodrigo Valdés, da Fazenda, e Luis Felipe Céspedes, da Economia – anunciaram sua demissão imediata como sinal de protesto. “Alguns não têm o crescimento dentro das prioridades mais altas e lhes custa, às vezes, compatibilizar isso com outros objetivos que são muito importantes também”, declarou Valdés.
“Tudo isso causou um grande alvoroço no Chile porque no fundo se interpreta que essa rejeição tem razões mais políticas do que técnicas ou ambientais”, afirma o diretor da Andes Iron. A organização de conservação marinha Oceana divulgou os vínculos entre o projeto de mineração e a família do político conservador Sebastián Piñera, rival de Bachelet e novo presidente do Chile desde 11 de março de 2018. A própria mineradora reconheceu que a família Piñera “participou passivamente” no início do projeto, em 2010, por meio de um fundo de investimentos. Hoje, 75% da Andes Iron pertence à família do empresário chileno Carlos Alberto Délano, amigo de Piñera há 40 anos.

No total, 22% da população da Comuna de La Higuera está em situação de pobreza

O futuro da mina, e da Reserva Nacional Pinguim de Humboldt, segundo os mais pessimistas, depende agora da Justiça. Em abril, o Tribunal Ambiental de Antofagasta anulou a decisão de rejeitar o projeto, ante a existência de irregularidades no procedimento. Mas os advogados da Oceana e de outras organizações de ecologistas e pescadores apresentaram em 16 de maio um recurso extraordinário na Corte Suprema solicitando uma nova rejeição à mina Dominga.
Magaly Báez, uma jovem da Comuna de La Higuera, resume o desespero dos partidários da mina: “Meu pai é pescador e eu sou a favor do projeto Dominga, porque nós precisamos de desenvolvimento na comuna. Estamos abandonados há mais de 40 anos pelo Governo. E vemos uma oportunidade de desenvolvimento e de trabalho para as pessoas, para nós e para nossos filhos”.
 
El País

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