segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A marca que a inquisição deixou na genética de populações da América Latina

Pintura muestra os Reis Católicos
 
Nos livros de história das escolas da América Latina, 1492 costuma ser apresentado como o ano em que Cristovão Colombo chegou ao território americano.
Mas também foi o ano de outro evento que deixou um imenso legado no continente, segundo um novo estudo que analisou o DNA de milhares de pessoas da América Latina, inclusive do Brasil.
Em 1492, os Reis Católicos da Espanha, Isabel de Castilha e Fernando de Aragão, expulsaram todos os judeus do reino, no início do que seria uma perseguição brutal de décadas contra esse grupo religioso. Para permanecerem no território, os judeus precisavam comprovar conversão ao catolicismo.
O decreto de expulsão foi redigido pela autoridade máxima da inquisição, Tomás de Torquemada. Ele proibia que os judeus, inclusive aqueles haviam se convertido ao catolicismo embarcassem às novas colônias da América.
No entanto, um novo estudo demonstra não apenas que muito mais judeus convertidos viajaram ao continente americano do que se pensava, mas também a marca genética que deixaram em muitos latino-americanos.
"Na atualidade, a população da América Latina apresenta uma maior afinidade com o perfil genético dos judeus sefarditas que os espanhóis", disse à BBC Mundo o pesquisador Juan Camillo Chacón Duque, especialista em genética populacional e principal autor do estudo publicado na revista científica Nature Communications.
O cientista, que também teve o DNA analisado, encontrou resultados surpreendentes sobre os próprios ancestrais.

Migração

Os pesquisadores estudaram os genomas de mais de 6,5 mil pessoas que moram em áreas urbanas de cinco países do continente americano: Brasil, Colômbia, Chile, México e Peru. E compararam os dados com outras 2,3 mil pessoas de outras partes do mundo.
O resultado foi surpreendente: 23% dos latino-americanos que tiveram o DNA analisados têm como ancestrais judeus que, na época da inquisição, se converteram ao cristianismo.
"Esse resultado sugere que houve uma migração significativa de pessoas com esse perfil genético para a América Latina", diz Chacón Duque, que realizou o estudo na University College London, no Reino Unido. Atualmente, Duque é pesquisador do Museu de História Natural da capital britânica.

Diferenças entre populações

"99,9% do genoma de todos os seres humanos é igual, mas esse 0,1% de variação representa 3 milhões de bases ou letras de código genético, ou seja, uma grande quantidade de informação", diz Duque.
Como muitas populações humanas se mantiveram isoladas umas das outras durante longos períodos ao longo da evolução da nossa espécie, elas tiveram tempo de acumular mutações no seu DNA, explicou o cientista.
"Portanto, o que fazemos em matéria de genética de populações é tentar estabelecer de onde vieram essas mutações no código genético das diferentes populações humanas, para poder entender como elas se relacionam geneticamente."
"Neste estudo, utilizamos centenas de milhares dessas mutações para comparar de maneira muito detalhada e precisa os perfis genéticos dos latino-americanos com os de diferentes populações ao redor do mundo."

Identidade genética com judeus sefarditas

A análise dessas variações permitiu a Chacón Duque e seus colegas estabelecer um vínculo genético entre a população atual da América Latina e os judeus que se converteram ao cristianismo durante os anos da inquisição.
O pesquisador colombiano trabalhou com colegas de todos os países que tiveram amostras analisadas. E usou sofisticados métodos computacionais desenvolvimentos por Garrett Hellenthal, professor da University College London.
"Mais de 23% dos latino-americanos estudados têm alta afinidade genética com populações de diferentes locais do Mediterrâneo", diz Chacón Duque.
"E a afinidade maior é com uma população da Turquia que se identifica como judia sefardita e que descende dos judeus que foram expulsos da Espanha", explica.
Segundo o pesquisador, esse resultado mostra que "muitos judeus conversos conseguiram viajar para a América Latia na época da colonização e disseminaram essa genética."

Bandera e escultura

Herança antiga

"Com nossos métodos estatísticos e a grande quantidade de informação genética que obtivemos, pudemos definir o quão antiga é essa contribuição genética", diz Chacón Duque.
"Sabemos também, a nível histórico, que houve muitas migrações clandestinas de judeus conversos que provavelmente queriam seguir praticando a sua fé e evitar a perseguição no seu país de origem", acrescenta.
Mas alguns documentos, como o diário de Luis de Carvajal, um judeu converso que viveu no México, demonstram que a Inquisição estendeu seus tentáculos até a América Latina. Carvajal e sua família foram torturados e queimados vivos. A herança dos judeus conversos coincide, além de tudo, com a chegada dos espanhóis ao continente americano.

Diário de Luis de Carvajal

Diversidade

Chacón Duque esclarece que, embora 23% dos milhares de latino-americanos que participaram da pesquisa tenham identidade genética com judeus conversos, não é possível generalizar esse percentual para toda a América Latina.
"Eu, pessoalmente, como geneticista e latino-americano, diria que é quase impossível fazer uma generalização deste tipo com uma amostra de 6,5 mil pessoas."
A principal razão, segundo o cientista, é que as amostras foram coletadas em centros urbanos e não refletem a diversidade das populações em zonas periféricas, rurais ou costeiras.
"A população da América Latina é muito diversa quanto aos processos de miscigenação e, em cada região, a história pode ser muito diferente", afirma.
"Por exemplo, a costa pacífica colombiana tem uma alta ancestralidade africana e é muito pouco provável que ali haja herança de judeus sefarditas."
Os ancestrais do cientista
O estudo trouxe resultados surpreendentes sobre os ancestrais do próprio Chacón Duque.
O pesquisador trabalhava num laboratório da Universidade de Antioquia quando foram coletadas amostras de participantes colombianos.
"Eu cumpria todos os critérios para ter a amostra coletada. Era colombiano e meus ancestrais eram colombianos por gerações", diz.
"Acabei participando e, no final das contas, eu também tenho ancestrais sefarditas. Tenho de 10% a 15% dessa ancestralidade na minha genética", afirma.

Tamanho do nariz

indígenas andinos e mapuche

O estudo publicado na revista Nature Communications é parte de um projeto mais amplo de análise genética chamada Candela (Consórcio para a Análise da Diversidade Latino-americana).
O projeto, liderado pelo cientista colombiano Andrés Ruiz Linares, busca caracterizar a diversidade da população da América Latina a nível morfológico ou de aparência física.
Além do vínculo com os judeus conversos, Chacón Duque e seus colegas constataram diferenças no formato do nariz em latino-americanos com ancestrais provenientes de diferentes grupos indígenas.
Os cientistas coletaram amostras genéticas de populações do norte, centro e sul do Chile e também dos Andes- na Bolívia e Peru.
"No centro do Chile, há uma ancestralidade mapuche, que são indígenas que habitavam zonas mais ao sul que os indígenas dos Andes bolivianos e peruanos e do norte do Chile", diz Duque.
"As pessoas que têm ancestralidade maior relacionada aos aymaras e quéchuas nos Andes, têm nariz mais perfilado e menos achatado que as com ancestralidade mapuche", explica
A causa dessas diferenças é desconhecida, mas há uma hipótese.
"Estudos anteriores apresentaram a hipótese de que essa diferença física se dá em decorrência da adaptação a diferentes climas", afirma.
"De alguma maneira, ter um nariz com fossas nasais mais estreitas, como é o caso do nariz perfilado e com protrusão maior das populações andinas, é mais favorável em terras altas em relação ao nível do mar, porque permite aquecer e umedecer o ar inalado de maneira mais eficiente que as narinas amplas de quem tem nariz mais achatado."

A história contada pela genética

O projeto Candela é uma das maiores análises genéticas da população da América Latina e deve produzir novas publicações e surpresas.
"O que mais me emociona é que o DNA pode revelar novas informações sobre eventos importantes, como a migração dos judeus conversos, que poderiam ficar ocultas para sempre", ressalta Javier Mendoza Revilla, outro autor do estudo.
Tanto no caso dos judeus conversos como no da ancestralidade indígena, algo está claro, segundo o pesquisador.
"Enquanto os registros escritos podem ser destruídos ou alterados, o mesmo não pode ser feito com o DNA."
A história da América Latina está escrita em seus genes.

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