domingo, 21 de junho de 2020

Como os bandeirantes, cujas homenagens hoje são questionadas, foram alçados a ´heróis paulistas'

Retrato de Domingos Jorge Velho 
 
Eles eram rudes, geralmente iletrados, passavam longos períodos embrenhados em matas e campos desconhecidos, comiam mal e perseguiam índios. Figuras típicas do Brasil colonial, diretamente responsáveis pelas incursões "do homem branco" pelos confins então desconhecidos do Brasil, os bandeirantes acabaram elevados ao panteão dos heróis — sobretudo dos paulistas —, em um movimento iniciado no fim do século 19, incorporado aos discursos das comemorações do primeiro centenário da Independência, em 1922, reforçado na Revolução Constitucionalista de 1932 e consolidado nas celebrações do Quarto Centenário de São Paulo, em 1954.
Documentos do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo atestam que o primeiro logradouro público a ser batizado com o termo foi a rua dos Bandeirantes, no bairro do Bom Retiro, em maio de 1891. De lá para cá, o povo paulista ganhou a avenida dos Bandeirantes, a rodovia dos Bandeirantes, o canal de TV Bandeirantes e até a sede oficial do governo do estado se chama Palácio dos Bandeirantes.
Monumentos e estátuas são inúmeros. Do Monumento às Bandeiras, obra de Victor Brecheret (1894-1955) concluída em 1953, à estátua do Borba Gato, polêmico trabalho de Júlio Guerra (1912-2001), inaugurada em 1957, não faltam homenagens aos bandeirantes pelas ruas e espaços públicos da cidade.
Na esteira dos movimentos que pedem a retirada de monumentos racistas ao redor do mundo — alguns indo às vias de fato —, o Brasil vive, sobretudo nas redes sociais, fenômeno semelhante. E o alvo tupiniquim são os bandeirantes.
"É importante que a gente derrube, reescreva, renomeie. Mas que fique registrada a historicidade disso", opina à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão (UEM) e membro do instituto Proprietas, que fomenta discussões sobre o bem comum.
Não basta derrubar, não basta renomear. É preciso registrar o momento histórico em que isso ocorreu, por que isso ocorreu. Afinal, se trata de disputas por memória. E nos momentos em que essas questões emergem, memórias em disputa podem provocar renomeações e derrubadas. Isso é positivo."
Segundo o historiador Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), quem primeiro elegeu os bandeirantes, também chamados de sertanistas, como heróis foram os membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), na década de 1890, em conjunto com genealogistas de então.
"Os sertanistas, vistos como bárbaros por grande parte dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, e por artistas cariocas, foram progressivamente enaltecidos nos círculos literários e intelectuais paulistas como líderes do processo de construção territorial do Brasil", contextualiza ele.
"Romances, artigos em jornais e na revista do IHGSP, livros de história, monumentos escultóricos públicos e pinturas históricas foram os maiores responsáveis pela disseminação de uma visão positiva dos bandeirantes, que enalteciam como heróicos os feitos de 'desbravamento' — a retirada do bravio dos sertões — por meio da destruição das missões jesuíticas espanholas, de quilombos, como o de Palmares, e de populações indígenas sertanejas das capitanias do Norte, atual Nordeste."
"A figura do bandeirante como aquele herói que ampliava as fronteiras da então colônia, ou daquele que descobre as riquezas minerais, começou a ser construída a partir da ascensão econômica de São Paulo, especialmente a partir dos fim do século 19 e início do século 20", explica o historiador Luís Soares de Camargo, diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.
"O contexto histórico é fácil de ser entendido: São Paulo despontava como a grande potência econômica, mas faltava-lhe uma base historiográfica que desse uma base a esse novo papel do povo paulista. Faltava um 'herói' para dar mais consistência a uma tese de que desde o passado São Paulo já estava à frente das demais capitanias. Assim, alguns historiadores deram início a esse processo de glorificação do passado paulista e a figura que mais se adequava era a dos sertanistas. Forte, corajoso, guerreiro."
Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez também atribui a consolidação do mito do bandeirante ao poderio econômico experimentado por São Paulo a partir do início do século 20.
"Houve a consagração e associação deste espírito aventureiro [dos bandeirantes] com os empreendimentos econômicos no estado de São Paulo, impulsionados pelo café e que alcançaram o mercado imobiliário, ferrovias e navegação, bancos e indústria", comenta ele à BBC News Brasil.

Os "que vão ao sertão"

Uma pesquisa nas atas da Câmara de São Paulo comprova que o termo bandeirante não existia antes do fim do século 19. "A documentação oficial não se referia a eles nem como bandeirantes nem como sertanistas", pontua Camargo. "O mais próximo que vi é 'homens que vão ao sertão'."
Em 16 de maio de 1583, por exemplo, a Câmara registrou a reclamação de Jerônimo Leitão, capitão de São Vicente, indignado com as pessoas que iam "ao
Em 16 de maio de 1583, por exemplo, a Câmara registrou a reclamação de Jerônimo Leitão, capitão de São Vicente, indignado com as pessoas que iam "ao sertão" sem sua licença, causando "prejuízo" para a capitania. Ele contava estar "informado de muita devassidão" nessas empreitadas mata adentro.
Camargo aponta o historiador e monge beneditino Gaspar Teixeira de Azevedo (1715-1800), mais conhecido como Frei Gaspar da Madre de Deus, como o primeiro a chamar, em livro, de bandeiras as incursões pelo sertão — o faz em "Memórias Para a História da Capitania de São Vicente", publicado originalmente em 1797. "Mas ele ainda não empregava o termo bandeirantes. Chamava-os apenas de paulistas", atesta Camargo.
Em 1870, o historiador, militar e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) publicou "História Geral do Brasil". Na obra ele também usa o termo bandeiras — mas não menciona nem bandeirantes nem sertanistas.

palácio dos bandeirantes

Segundo as pesquisas do historiador Camargo, a primeira menção do termo bandeirante pela imprensa ocorreu em 11 de abril de 1837. Uma nota publicada pelo jornal "Pharol do Império", do Rio de Janeiro, narrando que um "bandeirante", Sebastião Fernandes Tourinho, chefiou em 1573 uma expedição que "subiu pelo Rio Doce, e atravessando imensos sertões desceu pelo Jequitinhonha para a província da Bahia conduzindo escravos, algumas amostras de esmeraldas ou safiras".
Em 1867 o escritor e jornalista português José da Silva Mendes Leal (1820-1886) publicou o romance Os Bandeirantes em cuja primeira página o leitor já é apresentado a "um viageiro de trajo modesto e boa presença".
Na tese de doutorado "Entre Batismos e Degolas: (Des)caminhos Bandeirantes em São Paulo", defendida na USP, a socióloga e antropóloga Thaís Chang Waldman afirma que o primeiro registro da palavra bandeirante em um dicionário de língua portuguesa data de 1871. Trata-se do dicionário publicado pelo frei Domingos Vieira, diz Waldman, no qual "bandeirante é definido como 'o afiliado da bandeira, ou companhia de exploração das matas virgens".
A pesquisadora ainda cita o dicionário Houaiss, edição de 2009, em que "o bandeirante é registrado como substantivo masculino que denomina um 'indivíduo que no Brasil colonial tomou parte em bandeira (expedição)'".
Vale ressaltar que a palavra bandeirante, portanto, passa a ser utilizada quando o ciclo das bandeiras já estava encerrado — conforme assinala o historiador e sociólogo Ricardo Luiz de Souza no artigo "A Mitologia Bandeirante: Construção e Sentidos".
Martinez lembra que o "termo bandeirante se refere aos integrantes das bandeiras, expedições de portugueses e colonos ao interior do continente sul-americano que resultavam em múltiplos ganhos: conhecimento geográfico, escravização de indígenas, estabelecimento de povoações e pontos de apoio a futuras expedições, localização de minas de ouro e prata, terras para agricultura, entre outros".

Taunay: o 'formulador' do mito

Mas para compreender totalmente a instauração do mito do bandeirante como herói paulista é preciso voltar a um intelectual da primeira metade do século 20: o historiador, biógrafo, romancista, tradutor e professor Afonso d'Escragnolle Taunay (1876-1958).
"A construção desse imaginário histórico teve nele o seu principal formulador e divulgador, em várias obras históricas e no Museu Paulista [o Museu do Ipiranga]", ressalta Martinez.
"Taunay escreveu muito para jornais e depois refundia os textos em livros sem citar nenhuma fonte de documentação e das publicações anteriores", contextualiza o historiador. "Mas esse mito foi sendo construído ao longo de décadas e as caracterizações sofrem variações de autor para autor."
Entre 1924 e 1950, Taunay publicou "História Geral das Bandeiras Paulistas", obra em 11 tomos. Como diretor do Museu do Ipiranga — cargo ocupado de 1917 e 1953 —, o historiador também contribuiu para a consolidação desse imaginário. "Ele encomendou toda a representação iconográfica e a estatutária do bandeirismo que decora os salões do museu", diz Martinez. "O ano chave aqui foi 1922, nos preparativos para as comemorações do centenário da Independência do Brasil." Taunay trabalhou, segundo o historiador, para "enaltecer o papel dos paulistas na conquista territorial do interior do continente".
Camargo vê Taunay como o primeiro a "tratar o bandeirante como herói".
"É preciso lembrar que sua tarefa foi facilitada pelo acesso que ele teve aos documentos do Arquivo Histórico Municipal. Autor positivista, que somente dá crédito a partir de provas documentais, ele teve nesses documentos a prova necessária para suas análises", afirma.
A própria imagem do bandeirante, com suas características físicas e vestuário, acabou sendo criada nesse momento.
"Não existem retratos de bandeirantes realizados no momento em que esses homens viveram. Por isso, nada sabemos sobre suas fisionomias e pouco sobre como andavam vestidos pelos sertões", pontua o historiador Marins.
Como exemplo, ele cita o retrato de Domingos Jorge Velho (1641-1705), obra executada em 1903 por Benedito Calixto (1853-1927). "Foi a primeira representação visual de um bandeirante a entrar na coleção do Museu Paulista. Nessa tela, já aparecem muitas das características que acabaram por se tornar uma convenção de como representá-los: traços europeus e pele branca, chapéus de aba larga, botas de cano alto, bacamarte e a pose altiva inspirada diretamente nos retratos de reis, a partir do modelo de Hyacinthe Rigaud para o célebre retrato de Luís 14, hoje no Louvre", contextualiza ele.
Segundo o historiador, as obras encomendadas por Taunay acabaram "reforçando as características visuais [dos bandeirantes] e trazendo outras, como o uso do gibão acolchoado em losangos, cobrindo o tronco".
"Essas características iconográficas estabelecidas no Museu Paulista foram muito utilizadas em dois momentos chave da história paulista: a Revolução de 1932 e o Quarto Centenário de São Paulo", prossegue Marins. "Foi assim que apareceram em cartazes, cédulas, selos, porcelanas, anúncios comerciais, murais e em monumentos públicos, como o Monumento às Bandeiras, inaugurado em 1953, e no Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932, inaugurado em 1955, ambos no Ibirapuera (principal parque da cidade de São Paulo)."
Aos poucos, o paulista passa a se identificar — e a ser identificado — como bandeirante, como o sucessor do bandeirante.
Em sua tese, a antropóloga Waldman se debruçou sobre a transformação da acepção da palavra. A resposta estava em jornais antigos. "Notei que na década de 1920 o termo paulista já era amplamente evocado como bandeirante nas mais diferentes colunas jornalísticas, seja em discussões sobre 'a moda bandeirante', 'o esporte bandeirante', 'a lavoura bandeirante', 'a jurisprudência bandeirante', 'o meio social bandeirante', 'a terra bandeirante', entre tantas outras referências que remetem a São Paulo de então e aos seus habitantes", escreve ela.
"Mas afinal, quem é esse personagem que se insere em frentes, espaços e ramos tão diversos? Desbravador do Brasil, assassino, herói, genocida e mártir?", afirma a antropóloga. "(Des)portador do sertão, caçador de índios, destruidor de quilombos e soldado pacificador do gentil inimigo? Ou capitão do mato, sertanista e pioneiro no garimpo do ouro e das pedras preciosas? Inimigo dos espanhóis e dos jesuítas, defensor dos interesses da Coroa portuguesa e ao mesmo tempo insubmisso vassalo do rei de Portugal? E ainda aristocrata, bruto, milionário, despojado e self-made man? Mameluco, português, indígena? Caipira, monçoneiro, tropeiro, cafeicultor? Quatrocentão, modernista, imigrante, migrante, negro e mulher paulista?"
No artigo "Bandeirantismo e Identidade Nacional", publicado em Terra Brasilis, revista da Rede Brasileira de História da Geografia e de Geografia Histórica, a geógrafa Silvia Lopes Raimundo afirma que o "discurso regionalista, centrado na figura do bandeirante", se tornou ponte entre o local e o nacional em São Paulo.
"Na historiografia paulista produzida nesse período as ideias de conquista e civilização aparecem relacionadas com qualidades que as elites desejavam ver no Brasil da época, tais como progresso, modernidade, riqueza e integração territorial", escreve ela. "Nesse momento o estudo do movimento das bandeiras também foi utilizado para destacar a singularidade do habitante de São Paulo e seu papel na conquista e, posteriormente, na ocupação do território."
Taunay não foi o único a definir o bandeirante. Outra obra de referência nesse quesito é "Vida e Morte do Bandeirante", publicada em 1929 pelo jurista e escritor José de Alcântara Machado de Oliveira (1875-1941). Outro autor que também contribui para esse imaginário foi o caricaturista, pintor, cronista, escritor e ilustrador Belmonte, como era conhecido Benedito Carneiro Bastos Barreto (1896-1947) — é dele o livro "No Tempo dos Bandeirantes". "Suas representações dos bandeirantes serviram como inspiração para outros artistas também representarem essa figura do herói", comenta Camargo. "Acredito até que Júlio Guerra, autor do monumento 'Borba Gato', se inspirou em Belmonte para fazer sua estátua."
"A construção de uma mitologia implica na invenção de tradições, e a mitologia bandeirante foi utilizada neste sentido pelas elites paulistas; para enobrecer suas origens", escreve Souza.

Momentos-chave

Durante o movimento conhecido como Revolução de 1932, quando tropas paulistas estavam guerreando contra o restante do país, a ideia do bandeirante servia como argumento a diferenciar os de São Paulo dos brasileiros de outros Estados.
No livro "Confederação ou Separação" publicado em 1933, o historiador e sociólogo Alfredo Ellis Júnior (1896-1974) partiu do caráter do bandeirante para defender que os paulistas eram "diferentes" dos demais. "Eles [os bandeirantes] eram apelidados de 'portugueses', de 'vicentinos' ou de 'paulistas'. Jamais foram brasileiros", escreveu.
A relação com os bandeirantes estava presente até nos nomes dos batalhões. Muitos deles homenageavam figuras históricas do tipo, como Fernão Dias, Paes Leme Raposo Tavares e Anhanguera. "A revolução usou algumas imagens dos bandeirantes como os grandes heróis paulistas para conquistar corações e mentes durante o período", afirma o pesquisador e colecionador Ricardo Della Rosa, autor do livro "Revolução de 1932: A História da Guerra Paulista em Imagens, Objetos e Documentos". "Isso foi feito de forma intensiva, por meio da propaganda de guerra."
Essa ligação persistiu no pós-revolução. Maior exemplo é o Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, mais conhecido como Obelisco do Ibirapuera, monumento feito por Galileo Emendabili (1898-1974) entre 1947 e 1970. "É o maior ícone de todos. Carrega essa simbologia", comenta Della Rosa. "As faces externas do Obelisco trazem associações de imagens do passado bandeirante paulista com o soldado de 32."
Retrato do historiador Afonso Taunay, feito pelo artista Henrique Manzo

Essas mensagens viveram um auge nos anos 1950, sobretudo por conta das comemorações pelos 400 anos da fundação de São Paulo. "Em vários momentos a figura [do bandeirante] foi exaltada, mas o grande ápice foi mesmo em 1954 por conta das comemorações do Quarto Centenário. Naquela época, a figura gigante do bandeirante passou a ilustrar anúncios e outras publicações que exaltavam a cidade e seu povo. Nos jornais da época era comum essa utilização", afirma Camargo.
Pesquisador da história de São Paulo, Della Rosa afirma que esse movimento de revisão do heroísmo bandeirante começou a ser visto no fim dos anos 1960.
"Observamos uma degradação da imagem do bandeirante, que deixava de ser herói e passava a ser retratado como um escravizador e matador de índios", pontua.
Em sua opinião, tal revisionismo é cheio de riscos — e ele não concorda com a ideia de retirar monumentos ou renomear espaços públicos, por exemplo. "Hoje em dia vejo uma espécie de revisionismo histórico que me preocupa bastante, é o que coloca o bandeirante como se ele descesse ali, entrasse no sertão, com um exército de homens brancos… É preciso lembrar que os índios já eram bélicos. O europeu é outro ser bélico. Quando este chegou, acabou se associando a alguns índios e, se não fossem essas associações, não teriam existido as bandeiras. Colocar tudo na conta do bandeirante é um desconhecimento histórico."
BBC

sábado, 2 de maio de 2020

Coronavírus: há alguma evidência que o sars-cov-2 tenha sido criado em laboratório?

Testes de coronavírus

Em abril, vieram à luz trocas de mensagens de 2018 entre diplomatas do Departamento de Estado americano citando sua preocupação quanto à biossegurança de um laboratório viral em Wuhan, na China. A cidade foi o primeiro epicentro da pandemia do novo coronavírus.
Ao mesmo tempo, um comunicado emitido nesta quinta-feira (30/4) pelo Escritório da Direção de Inteligência Nacional dos EUA (que supervisiona os órgãos de inteligência do país) afirmava que "a comunidade de inteligência concorda com o consenso científico de que o vírus da covid-19 não foi feito pelo homem ou geneticamente modificado".
De qualquer modo, oficiais de inteligência seguem investigando se a pandemia se originou mesmo da transmissão de animais para humanos ou se surgiu em algum laboratório, mesmo que por acidente.

O que diz a troca de mensagens do Departamento de Estado?

Em reportagem de 14 de abril do Washington Post, trocas de mensagens diplomáticas de 2018 mostravam que cientistas diplomáticos haviam sido enviados diversas vezes para visitas a uma organização de pesquisas na China.
Esses cientistas mandaram dois alertas a Washington sobre esse laboratório. Segundo a reportagem, os cientistas estavam preocupados quanto à segurança e ao gerenciamento de falhas no Instituto de Virologia em Wuhan (WIV) e pediam ajuda.
A reportagem diz também que esses enviados se preocupavam com a possibilidade de a pesquisa do laboratório chinês sobre coronavírus em morcegos poder gerar uma pandemia semelhante à da Sars. O jornal afirma que as trocas de mensagens deram combustível, dentro do governo dos EUA, a discussões quanto a se o WIV ou outro laboratório em Wuhan poderia ser a fonte originária do vírus causador da pandemia atual.
Além disso, a emissora Fox News, considerada próxima ao presidente Donald Trump, fez uma reportagem afirmando ter ouvido de fontes que "há crescente confiança de que a pandemia provavelmente surgiu em um laboratório de Wuhan, embora não como uma arma biológica, mas como parte do esforço chinês para demonstrar que seus esforços para identificar e combater vírus são iguais ou maiores do que as habilidades dos EUA".
A pandemia veio à tona no final do ano passado, quando casos iniciais foram relacionados a um mercado de comida e animais de Wuhan. Mas, apesar da ampla especulação, ainda não há uma evidência concreta de que o Sars-CoV-2 (que causa covid-19) tenha sido acidentalmente liberado desde um laboratório.
E na última quinta-feira, o Escritório da Direção de Inteligência Nacional dos EUA descartou por enquanto teorias conspiratórias sobre a origem do vírus, embora diga que ainda está analisando se o surto atual "começou pelo contato com animais infectados ou foi resultado de algum acidente em um laboratório de Wuhan".
O jornal The New York Times publicou nesta semana que membros do governo Trump têm pressionado agentes de inteligência para que eles apoiem, mesmo sem provas, a teoria de que o vírus teria vindo do laboratório em Wuhan. Analistas de inteligência ouvidos pelo jornal demonstraram preocupação de que essa pressão distorça as análises feitas pelas agências.
Trump tem aumentado seu esforço em culpar a China pela pandemia: ao ser perguntado a respeito de se havia visto algo que o fizesse pensar que o WIV era a fonte original da pandemia, ele respondeu: "Sim, eu vi". Ele disse ter visto "evidências convincentes disso", mas não detalhou e não apresentou provas.
A China rejeitou essas acusações e criticou a resposta dos EUA à crise.

Que tipo de segurança esses laboratórios têm?

Laboratórios que estudam vírus e bactérias seguem um sistema conhecido como padrão BSL - sigla em inglês para nível de biossegurança.
São quatro níveis, que dependem do tipo de agentes biológicos que estão sendo estudados e das medidas preventivas necessárias para isolá-los.
O nível de biossegurança 1 (BSL-1) é o mais baixo, usado por laboratórios estudando agentes biológicos bem conhecidos e que não ameaçam a vida humana.
As medidas de contenção aumentam até o BSL-4, o mais alto, reservado para laboratórios que lidam com patógenos perigosos e para os quais há poucas vacinas e tratamentos: ebola, vírus de Marburg (que causa febre hemorrágica) e - no caso de dois institutos nos EUA e na Rússia - varíola.
Os padrões BSL são aplicados internacionalmente, mas com algumas variantes de nomenclatura.
"Os russos, por exemplo, classificam seus laboratórios de alta contenção como 1 e os de baixa contenção como 4, ou seja, o exato oposto do padrão. Mas as exigências de práticas e infraestrutura em si são similares", diz Filippa Lentzos, especialista de biossegurança no King's College London.
No entanto, embora haja um manual da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito, esses padrões não são exigidos formalmente por nenhum tratado internacional.
"Eles foram desenvolvidos para serem do melhor interesse de que se trabalhe de modo seguro, para que funcionários de laboratórios não infectem a si mesmos ou suas comunidades, e para que o ambiente evite acidentes", prossegue Lentzos.
Ela acrescenta que "Se você quer fazer projetos com parceiros internacionais, é exigido que o laboratório opere sob determinados padrões. O mesmo vale se você tem produtos ou serviços (de biossegurança) que quer vender no mercado."
O WIV, por sinal, recebeu financiamento dos EUA, além de assistência de institutos de pesquisa americanos. Os documentos diplomáticos divulgados recomendavam que essa assistência aumentasse.

Que tipos de falhas os documentos diplomáticos apontavam?

Os documentos publicados pelo Washington Post não deixam isso claro. Mas, de modo geral, há múltiplas formas em que medidas de segurança podem ser desrespeitadas em laboratórios que lidam com agentes biológicos.
Segundo Lentzos, isso inclui "quem tem acesso ao laboratório, o treinamento e re-treinamento de cientistas e técnicos, os procedimentos de registros, o inventário de patógenos, práticas de notificação de acidentes e procedimentos de emergência".

Mercado de Wuhan

Mas quão incomuns são as preocupações expressadas nos documentos diplomáticos?
Acidentes acontecem. Em 2014, frascos esquecidos de varíola foram encontrados em uma caixa de papelão em um centro de pesquisas perto de Washington. Em 2015, militares americanos acidentalmente enviaram amostras vivas de antrax (em vez de esporos mortos) para até nove laboratórios ao redor do país e para uma base militar na Coreia do Sul.
Há variações de padrões de segurança pelos diversos laboratórios da parte inferior da escala BSL, e muitas brechas de pequena dimensão sequer chegam ao noticiário.
Já no nível BSL-4 o número de laboratórios operantes é são relativamente pequeno. A Wikipedia lista mais de 50 ao redor do mundo, incluindo o de Wuhan; mas não há uma listagem oficial.
Esses laboratórios têm de ser construídos sob regras bem específicas, por lidarem com os mais perigosos patógenos conhecidos da ciência. Como resultado, eles costumam ter práticas de segurança rígidas. Então qualquer preocupação com a segurança nesses locais provavelmente chamaria a atenção.

Já não havia informações prévias de vazamento de vírus de laboratório?

Sim, e houve especulação - em geral não baseada em dados - assim que o coronavírus veio à tona.
Uma teoria difundida na internet em janeiro sugeria que o vírus tivesse sido projetado como uma arma biológica. Essa alegação foi repetidamente desmentida por cientistas, que notaram que os estudos mostram que o coronavírus provavelmente se originou de animais - provavelmente morcegos.
Vírus também podem ser projetados para fins de pesquisa científica. Por exemplo, estudos podem melhorar a habilidade de um patógeno causar doenças com o objetivo de investigar como vírus fazem mutação.
Mas um estudo americano sobre o genoma do novo coronavírus, publicado em março, não encontrou nenhum sinal de que ele tivesse sido projetado. "Ao comparar os dados disponíveis da sequência genômica das cepas conhecidas do coronavírus, podemos dizer com segurança que o Sars-CoV-2 se originou de processos naturais", disse na época o coautor Kristian Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia.
Vírus podem ser feitos para mutação em laboratório sem a manipulação direta de seus genes. Em experimentos, vírus ou bactérias são passados de um animal de laboratório para outro com o objetivo de estudar como os patógenos se adaptam a seus hospedeiros. No entanto, novamente, não há evidência de que isso tenha ocorrido no caso do novo coronavírus.
Há, também, a alegação de que pode ter havido a soltura acidental de um vírus natural de dentro de um laboratório. Isso ganhou força ante a proximidade do mercado de Wuhan )apontado como origem do surto) com ao menos dois institutos de pesquisa de doenças infecciosas.

morcego

Essas pesquisas são consideradas legítimas e publicadas em jornais científicos internacionais. Dada a experiência chinesa com a epidemia da Sars, nos anos 2000, isso não chega ser surpreendente.
A crença principal até agora é de que o Sars-CoV-2 se espalhou a partir do Mercado de Huanan, em Wuhan, onde diversas espécies de mamíferos vivos eram mantidos e vendidos. A ideia é de que um vírus de morcego tenha sido transmitido a humanos por meio de um animal intermediário.
No entanto, alguns pesquisadores expressaram dúvidas quanto a essa explicação ainda em janeiro, quando um artigo publicado no Lancet mostrou que, embora a maioria dos pacientes iniciais de covid-19 tenha tido algum contato com o mercado, muitos outros não tinham qualquer ligação com o local. É possível que essa ligação ocorra de uma forma que ainda não foi decifrada pela ciência.
A médica Lentzos diz que identificar a origem do vírus é "muito difícil" e acrescenta que "tem havido discussões silenciosas, de bastidores (...) na comunidade de especialistas em biossegurança, questionando a (teoria) da origem do mercado de Wuhan que veio muito fortemente da China".
Por enquanto, porém, não há nenhuma evidência de que o WIV seja a fonte da Sars-CoV-2.
Em 16 de abril, o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, tratou do assunto em uma entrevista coletiva, dizendo que especialistas da OMS "disseram múltiplas vezes que não há evidência de que o novo coronavírus tenha sido criado em laboratório".
A China foi duramente acusada de pouca transparência no início da pandemia - acusação que rejeita. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pence, disse que Pequim "precisa pôr a limpo" sobre o que sabe a respeito do novo coronavírus.
Em meio à disputa de narrativas, o meticuloso trabalho científico de traçar as origens do novo coronavírus devem continuar.
BBC
Línea

Como o maior buraco na camada de ozônio no Polo Norte finalmente se fechou

Mapa meteorológico sobre o ártico mostrando o buraco na camada de ozônio antes de se fechar

O maior buraco na camada de ozônio já detectado sobre o Pólo Norte se fechou, quase um mês após sua descoberta.
No final de março, os cientistas do Serviço de Monitoramento de Atmosfera Copernicus (CAMS) detectaram o que chamavam de uma grande lacuna "sem precedentes" na atmosfera, pairando sobre a região do Ártico.
O buraco logo se tornou o maior que eles já haviam monitorado no hemisfério Norte.
Era do tamanho da Groenlândia, abrangendo a superfície da calota polar.
Mas, em 23 de abril, houve boas notícias: "O buraco sem precedentes na camada de ozônio do hemisfério norte em 2020 chegou ao fim", tuitou a CAMS.

Por que o ozônio é importante

A camada de ozônio fornece à Terra proteção essencial contra os raios nocivos do sol. A maior parte do ozônio da Terra é armazenada nos altos níveis da atmosfera — na estratosfera — a uma altitude entre 10 e 40 km acima da Terra.
A camada de ozônio é um dos escudos mais eficazes contra a radiação ultravioleta, que podem fazer mal à vida. Uma lacuna nesse escudo pode afetar a taxa de derretimento do gelo, pressionar mais o sistema imunológico dos organismos vivos e aumentar o risco de desenvolver câncer de pele e catarata para humanos.
Embora tenha havido pequenas lacunas na camada de ozônio sobre o Ártico antes, esta foi a "primeira vez que se viu um verdadeiro buraco na camada de ozônio no Ártico", de acordo com o CAMS.

Como o buraco apareceu e desapareceu?

A organização disse que o buraco de rápido crescimento foi resultado de condições climáticas incomuns no Ártico.
Quando ventos fortes prenderam o ar gelado sobre as calotas geladas por várias semanas seguidas, esse ar criou o que os cientistas chamaram de "vórtice polar" — uma força poderosa que gira sobre si mesma e gera impacto suficiente para abrir um buraco no ozônio da estratosfera.
Embora a lacuna esteja agora fechada, os cientistas dizem que ela poderá se abrir novamente se as condições meteorológicas permitirem.
"Esse buraco no ozônio do Ártico não tem nada a ver com bloqueios relacionados ao coronavírus, mas foi causado por um vórtice polar incomumente forte e duradouro", disse o CAMS em um tuíte.
"Esse buraco no ozônio foi basicamente um sintoma do maior problema de depleção do ozônio e foi fechado por causa dos ciclos anuais locais, e não pela cura a longo prazo. Mas há esperança: a camada de ozônio também está se recuperando, mas lentamente", acrescentou.

Buraco na camada de ozônio sobre a Antártica ainda está aberto

Um buraco sobre o Polo Norte é um evento raro, mas há um buraco muito maior reabrindo anualmente na Antártica pelos últimos 35 anos.
Embora seu tamanho varie de ano para ano, não há sinal de que ele vá, em um futuro próximo, se fechar de vez.
Houve uma recuperação lenta desde que o uso de CFCs - clorofluorcarbonos - foi proibido em 1996.
Estes são produtos químicos usados ​​na fabricação de aerossóis, espumas, solventes e refrigerantes e geram uma grande degradação nessa camada de proteção.
De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o buraco na camada de ozônio na Antártica encolhe entre 1% e 3% por década desde 2000.
Até agora, o menor tamanho do buraco registrado na camada de ozônio da Antártica foi no ano passado (2019), mas a OMM prevê que ele não "se cure" completamente até pelo menos 2050.
 
Ilustração da Terra vista do espaço
 
"Esse buraco no ozônio foi basicamente um sintoma do maior problema de depressão do ozônio e foi fechado por causa dos ciclos anuais locais, e não pela cura a longo prazo. Mas há esperança: a camada de ozônio também está se recuperando, mas lentamente", acrescentou.

Buraco na camada de ozônio sobre a Antártica ainda está aberto

Um buraco sobre o Polo Norte é um evento raro, mas há um buraco muito maior reabrindo anualmente na Antártica pelos últimos 35 anos.
Embora seu tamanho varie de ano para ano, não há sinal de que ele vá, em um futuro próximo, se fechar de vez.
Houve uma recuperação lenta desde que o uso de CFCs - clorofluorcarbonos - foi proibido em 1996.
Estes são produtos químicos usados ​​na fabricação de aerossóis, espumas, solventes e refrigerantes e geram uma grande degradação nessa camada de proteção.
De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o buraco na camada de ozônio na Antártica encolhe entre 1% e 3% por década desde 2000.
Até agora, o menor tamanho do buraco registrado na camada de ozônio da Antártica foi no ano passado (2019), mas a OMM prevê que ele não "se cure" completamente até pelo menos 2050.
BBC

domingo, 5 de abril de 2020

Coronavirus: governo brasileiro vai monitorar celulares para conter pandemia

O governo brasileiro vai passar a ter acesso a dados das operadoras de celulares para identificar aglomerações de pessoas em todo o país.
A medida, adotada em outros países, é defendida como uma forma de conter o avanço do novo coronavírus. Especialistas, no entanto, alertam que esse tipo de vigilância não pode levar à violação do direito à privacidade assegurado na legislação.
Nos moldes atuais, o sistema em desenvolvimento no Brasil não permite ao governo federal ter acesso à identidade e ao número de telefone das pessoas que transitam pelas ruas com esses aparelhos, como tem ocorrido na China, na Coreia do Sul e em Israel, por exemplo.
Segundo o SindiTelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal), os dados relativos a quase 220 milhões de aparelhos celulares serão repassados com um dia de atraso de modo aglomerado, estatístico e anonimizado, a partir da coleta de informações por quase cem mil antenas. O sistema deve ficar pronto em até duas semanas.
O modelo chinês de uso de dados de telefones celulares no combate à pandemia é considerado até agora um dos mais eficientes do ponto de vista sanitário, e um dos mais controversos acerca do direito à privacidade.
O governo chinês adotou uma série de ferramentas, com base em GPS, antenas de celular, aplicativos e QR Code, entre outros, para identificar a localização de alguém infectado dias antes da confirmação do diagnóstico, contatar e por vezes isolar quem estava no mesmo vagão de metrô, e não no veículo inteiro, por exemplo.
A medida serve também para proibir pessoas de entrarem em prédios ou transportes públicos ou identificar se alguém em quarentena desrespeitou a medida de isolamento imposta.

'Precisamos dar agilidade'

O ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, defendeu que as operadoras de telefonia disponibilizem os dados pessoais individualizados para as autoridades de saúde localizarem pessoas infectadas, mas o setor de telefonia móvel e a Advocacia-Geral da União afirmam que a legislação brasileira veda isso.
"Eu peço aqui para as telefônicas que disponibilizem isso. Se houver necessidade de nós regulamentarmos que, em caso de epidemia, como estamos vivendo, isso passa a ser público, porque não tem outro jeito de localizar tão rápido. Se eu for pedir onde a senhora mora, qual o número da sua casa, do seu CEP. Pelo número do telefone, eu caio no endereço onde ele está registrado. Podemos ter erro para cá, para lá? Podemos, mas já teríamos o dado do nome da pessoa, do CPF. Precisamos dar agilidade para esse profissional", disse Mandetta.
Em entrevista à BBC News Brasil, o presidente-executivo do SindiTelebrasil, Marcos Ferrari, afirma que o compartilhamento dos dados com esse nível de detalhe seria ilegal.
"Do ponto de vista da legislação (vigente no Brasil), a solução com dados anonimizados e agregados é o máximo que podemos fazer. Mas a maneira que isso avança depende de cada país. Nós só nos limitamos a esses dados estatísticos."

tela de celular com mensagens enviadas pelo governo da coreia do sul

A iniciativa brasileira, cujos moldes partiram do setor privado, se inspira em estratégias menos invasivas à esfera privada adotadas por países como a Espanha, que utiliza o distanciamento social como principal medida contra a pandemia que infectou ao menos 1 milhão de pessoas e matou 50 mil ao redor do mundo.
Segundo Ferrari, do SindiTelebrasil, o sistema brasileiro permitirá às autoridades federais identificar pontos de aglomeração, em transportes públicos, estabelecimentos e espaços públicos, como ocorreu durante a Olímpiada de 2016, e associar esses dados a modelos matemáticos que tentam entender e prever o espalhamento do vírus.
Até o momento, o Brasil confirmou 7.910 casos da doença e 299 mortes em mais de 400 municípios. Seis em cada 10 diagnósticos confirmados estão na região Sudeste.
O governo federal ainda não definiu a governança desses dados e quem estará à frente dela, como o Ministério da Defesa ou o Ministério de Ciência e Tecnologia, por exemplo.
Segundo a agência, já há inclusive "debate em curso para a sobreposição de indicadores de renda e faixa etária a essas camadas (de localização, deslocamentos e concentrações de usuários), por exemplo".

NSO screenshot

A própria Anatel levanta a hipótese de uso indevido desses dados que só podem ser compartilhados por força de decisão ou autorização judicial.
"Ferramentas iniciadas com um determinado propósito podem rapidamente evoluir para formas de rastreamento, em última instância, pessoa a pessoa com a produção de elementos que venham a ser inclusive objeto de debate no Judiciário."
Vale lembrar que a norma e a autoridade que poderiam tratar desse tema, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), só entrarão em vigor em dezembro de 2020.
No Brasil, dados anônimos não são considerados dados pessoais e, portanto, não têm obstáculos legais ao seu compartilhamento.
A legislação brasileira também diferencia a comunicação de dados (horário das chamadas, por exemplo) e o teor da comunicação (como mensagens e telefonemas), estes com sigilo assegurado na Constituição.
O problema reside nos dados pessoais individualizados, que atualmente só têm o sigilo quebrado por meio de pedido à Justiça por parte de polícias e Ministérios Públicos durante investigações.
O eventual uso de dados de celulares faz parte de uma lei sancionada em fevereiro pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Um dos artigos do texto, que trata da estratégia do país para conter a pandemia, prevê o compartilhamento entre órgãos e entidades públicas de "dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção de coronavírus".

O que será compartilhado?

Mas que tipo de dados seriam compartilhados? Anônimos ou identificados, como defende o ministro da Saúde?
Em parecer, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirma que a legislação permite a "viabilidade de compartilhamento dos dados na forma anônima e agregada", com a devida cautela de minimizar a quantidade de dados coletados e compartilhados.
E a localização geográfica dos celulares? Para a AGU, cabe à Justiça decidir sobre isso.
"Entende-se, assim, que seria necessária análise jurídica mais aprofundada acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF quanto à inclusão, na cláusula de reserva de jurisdição prevista no artigo 5, inciso XII, da Constituição Federal, de dados de geolocalização, obtidos a partir de dispositivos móveis de comunicação, que permitam a identificação individualizada do usuário."
Segundo Bruna Martins, analista de Políticas Públicas e advocacy da organização Coding Rights, "a utilização de dados de qualquer cidadão brasileiro contra a covid-19 requer transparência sobre quais informações são coletadas e processadas a fim de que seja possível saber se o uso desses dados é realmente necessário e proporcional aos fins".
Para ela, é importante que a sociedade saiba quais dados serão compartilhados exatamente para que se evite legitimar "mais vigilância privada e estatal, algo já inaceitável, motivada pela urgência da crise de saúde pública".

pessoas na coreia com equipamentos de proteção

Interesse coletivo x individual

Ao longo do avanço da pandemia, tem ganhado força o debate em torno de medidas que utilizam dados pessoais e sistemas de vigilância para combater o vírus. Até onde o interesse coletivo pode avançar sobre o individual?
Para parte dos especialistas e das autoridades, o debate sobre o direito à privacidade nesse momento não é apenas irrelevante como também pode ser fatal. O lado oposto aponta o risco da instalação de um Estado de vigilância permanente em nome de um bem comum e em detrimento do direito à privacidade.
O economista italiano Luigi Zingales, professor da Universidade de Chicago, afirmou à BBC News Brasil que o uso disseminado de celulares por todos os estratos sociais resolve uma dificuldade histórica de rastrear as pessoas e evitar que um vírus se alastre a ponto de sobrecarregar o sistema de saúde por faltar leito para todo mundo. Mas a estratégia só seria efetiva no início de um surto, por ser impossível monitorar metade da sociedade, por exemplo.
A Coreia do Sul, por exemplo, se tornou um dos países mais eficientes em achatar a curva de contágio, ou seja, evitar que muitas pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo ao identificar rapidamente quem contraiu o vírus e as pessoas com quem ela teve contato.
Para isso, o país asiático usa imagens de câmeras de vigilância, dados de geolocalização individualizados e até compras de cartão para identificar o trajeto das pessoas infectadas e quebrar a cadeia de contágio.
Mila Romanoff, chefe de governança e dados de um órgão da Organização das Nações Unidas, afirmou ao jornal americano The New York Times que o desafio é saber: "Quantos dados bastam?"
Em Israel, o governo aprovou medidas de emergência que autorizam suas agências de segurança a rastrear os dados de telefones celulares de pessoas com suspeita de coronavírus.

TraceTogether

Em resposta, a Associação dos Direitos Civis de Israel disse que a mudança "abre um precedente perigoso", já que tais poderes são geralmente reservados para operações de combate ao terrorismo.
Uma vez que um indivíduo seja identificado como um possível caso de coronavírus, o Ministério da Saúde poderá rastrear se a pessoa está cumprindo ou não as regras de quarentena. E também pode enviar uma mensagem de texto para pessoas que podem ter entrado em contato com elas antes que os sintomas surgissem.
"Israel é uma democracia e devemos manter o equilíbrio entre os direitos civis e as necessidades públicas. Essas ferramentas nos ajudarão a localizar os doentes e impedir que o vírus se espalhe", afirmou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Em Cingapura, o governo divulga na internet informações sobre a conexão entre os casos diagnosticados (quem infectou quem) e dados sobre pessoas infectadas que podem levar à identificação delas por outras.
A exemplo, "o caso 227 é um caso importado envolvendo um cidadão cingapurense de 53 anos que esteve na França entre 7 e 12 de março" e "trabalha na Igreja Evangélica do Farol". Na Coreia do Sul, esse tipo de medida levou à acusações de adultério contra alguns dos infectados.
Na Rússia, o aplicativo criado pelo governo para combater a pandemia demanda acesso no celular a telefonemas, arquivos, câmera e dados de rede.
Em Taiwan, a polícia abordou um homem infectado menos de uma hora depois que ele deixou sua casa, desrespeitando o isolamento imposto.
"Nós entendemos o impulso de usar tecnologia para prevenir a disseminação do vírus, e encorajamos esforços de boa fé para preservar a saúde pública. Mas precisamos permanecer atentos para garantir que aqueles que estão no poder ajam em nome do interesse público", afirmou a organização não governamental Surveillance Technology Oversight Project (Stop).
BBC

Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974

Aulas suspensas e eventos esportivos transferidos, algumas das consequências da atual pandemia do novo coronavírus, já marcaram a história recente do Brasil, por conta de outra doença: a meningite.
Em 1974, durante o período da ditadura militar, o Brasil enfrentava a pior epidemia contra a meningite de sua história. O país já tivera dois surtos da doença - um em 1923 e outro em 1945 -, mas, nenhum deles tão grave ou letal.
Isso porque o Brasil foi vítima não de um, mas de dois subtipos de meningite meningocócica: do tipo C, que teve início em abril de 1971, e do tipo A, em maio de 1974.
Para evitar o contágio, o governo tomou medidas drásticas: decretou a suspensão das aulas e suspendeu eventos esportivos. Os Jogos Pan-Americanos de 1975, que estavam marcados para acontecer em São Paulo, tiveram que ser transferidos para a Cidade do México. Hospitais, como o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ficaram superlotados.
A que viria a ser a maior epidemia de meningite da história do Brasil teve início em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Logo, a população mais carente começou a se queixar de sintomas clássicos, como dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em novembro daquele ano, o que parecia ser um surto restrito a uma determinada localidade logo se alastrou e, aos poucos, ganhou proporções epidêmicas. Dali, não parou mais.

Placa com cultura de bactérias
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes. Algo semelhante só se via no "Cinturão Africano da Meningite", área que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia.
Das regiões mais carentes, a epidemia migrou para os bairros mais nobres. Até julho daquele ano, um único hospital em São Paulo atendia pacientes com meningite. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas tinha 300 leitos disponíveis, mas chegou a internar 1,2 mil pacientes.
"Não houve quarentena porque o período de incubação da meningite é muito curto", explica a epidemiologista Rita Barradas Barata, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Na época, Rita trabalhava como aluna do internato em medicina no Emílio Ribas. "O atendimento foi além de sua capacidade máxima. Trabalhávamos muitas horas por dia", recorda.
De agosto em diante, outras 26 unidades passaram a fazer parte de uma rede de atendimento a pacientes com sintomas de meningite. "Depois de um ou dois dias recebendo tratamento injetável, os casos mais leves eram transferidos para outras unidades, onde recebiam a medicação oral. Já os pacientes mais graves permaneciam no Emílio Ribas", complementa a médica.

Atentados, passeatas e epidemias eram assuntos vetados na imprensa

Até então, uma pequena parcela da população, quase nula, sabia da existência da epidemia. O governo procurou escondê-la ao máximo, segundo explica quem acompanhou o caso de perto.

Policial na ditadura

"Assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença", afirma a jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora da tese A Construção Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira (1971-1975). "Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas".
Durante os anos da ditadura, alguns temas foram proibidos de serem divulgados - através de notícias, entrevistas ou comentários - em jornais e revistas, rádios e TVs. A epidemia de meningite que castigou o Brasil na primeira metade da década de 1970 foi um deles.
Sob o pretexto de não causar pânico na população, a censura proibiu toda e qualquer reportagem que julgasse "alarmista" ou "tendenciosa", sobre a moléstia.
Em 1971, quando foram registrados os primeiros casos, o epidemiologista José Cássio de Moraes, doutor em Saúde Pública pela USP e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, integrava uma comissão de médicos de diferentes áreas, como epidemiologistas, infectologistas e sanitaristas. Juntos, detectaram um surto da doença e procuraram alertar as autoridades. Não conseguiram. Em tempos de 'milagre econômico', o governo se recusou a admitir a existência de uma epidemia. "Os militares proibiram a divulgação de dados. Pensavam que conseguiriam deter a epidemia por decreto. Se eu não divulgo, é como se não existisse. Não sabiam que o vírus era analfabeto e não sabia ler Diário Oficial", ironiza o médico.
Dali por diante, médicos de instituições públicas foram proibidos de conceder entrevistas à imprensa. O jeito era dar declarações em "off" para jornalistas de confiança, como Demócrito Moura, do Jornal da Tarde. Mesmo assim, as poucas matérias publicadas, alertando a população dos riscos da meningite, eram desmentidas pelas autoridades.
"Ao governo não interessava a divulgação de notícias negativas. Negar a existência da epidemia foi um erro porque facilitou sua propagação e atrasou a adoção de medidas necessárias ao seu combate. Numa situação dessas, quanto mais rapidamente essas medidas forem adotadas, menores serão as perdas de vidas e os danos à economia", afirma o historiador Carlos Fidelis Ponte, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Vacina

Medo

Em 1974, quando a verdade veio à tona, pelo menos sete Estados totalizavam 67 mil casos - 40 mil deles só em São Paulo. A população, quando soube da epidemia, entrou em pânico. Com medo da propagação da doença, as pessoas evitavam passar na frente do Emílio Ribas. De dentro de carros e ônibus, fechavam suas janelas. Na falta de remédios e de vacinas, recorriam a panaceias milagrosas, como a cânfora.
"Naquela época, não havia rede social, mas já existiam 'fake news'. A boataria atrapalhou bastante", recorda José Cássio.
O governo suspendeu as aulas e mandou os estudantes de volta para casa. Quando era registrado algum caso nas dependências das escolas, as autoridades sanitárias passavam formol nas mesas e carteiras. Em algumas cidades, as escolas públicas foram transformadas em hospitais de campanha para atender os doentes.
Nos hospitais, a epidemia sobrecarregou especialistas em doenças infecciosas. Médicos de outras áreas, para evitar a contaminação, usavam capacetes, óculos e botas. Outros, ao contrário, atendiam pacientes sem qualquer tipo de proteção.
Um terceiro grupo preferiu mudar para o interior, com suas famílias.
Uma das primeiras medidas foi prescrever sulfa. Na esperança de deter o avanço da epidemia, a população passou a tomar o antibiótico por conta própria. "O estoque acabou rapidamente e a bactéria ficou resistente", recorda José Cássio.
Todos os dias, a comissão médica da qual o médico fazia parte procurava atualizar os números e divulgá-los no quadro de avisos do Palácio da Saúde, onde funcionava a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Os setoristas da área até tinham acesso às informações, mas não podiam divulgá-las.
Os números de casos e de óbitos são contraditórios. O estudo A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX: Características Epidemiológicas, de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, calcula que, no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1,6 mil óbitos. Já a edição de 30 de dezembro de 1974 do jornal O Globo divulgou que, só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2,5 mil em São Paulo.
Ministério censurado
Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência no lugar do general Médici. Para ministro da Saúde, ele nomeou o médico sanitarista Paulo de Almeida Machado.

Ernesto Geisel

Naquele ano, a jornalista Eliane Cantanhêde, então na revista Veja, conseguiu uma exclusiva com o ministro, em Brasília. Pela primeira vez, uma autoridade admitia publicamente que o Brasil vivia uma epidemia. Mais que isso. Ele alertou sobre os riscos da meningite e ensinou medidas de higiene à população.
De volta à redação, Cantanhêde começou a bater a matéria e a enviá-la, via telex, para a sede da Veja, em São Paulo. Dali a pouco, ficou sabendo que a entrevista tinha sido censurada. Motivo? "Não havia vacina para todo mundo", explica Eliane. "As pessoas não sabiam o que era meningite. Muitas delas morriam e, por falta de informação, não sabiam do quê".
No dia 26 de julho de 1974, o jornalista Clóvis Rossi também teve um de seus textos censurados. No espaço reservado ao artigo A Epidemia do Silêncio, a direção da Folha de S. Paulo se viu obrigada a publicar um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões. "Desde que, há dois anos, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações e reduzir os números a proporções incompatíveis com a realidade", alertou Rossi no artigo censurado.
Naquele mesmo ano, o governo brasileiro assinou um acordo com o Instituto Pasteur Mérieux e importou em torno de 80 milhões de doses da vacina contra meningite. "O laboratório francês precisou construir uma nova fábrica porque a que existia não comportava uma produção tão grande", relata o historiador Carlos Fidelis. "Foi a partir dessa emergência que se criou, na Fiocruz, a fábrica de fármacos, a Farmanguinhos, e a de vacinas, a Bio-Manguinhos".

Vacinação

Em 1975, o Brasil deu início à Campanha Nacional de Vacinação Contra a Meningite Meningocócica (Camem). Foi quando, para estimular a ida em massa da população aos postos de saúde, o governo passou a divulgar os números da doença.
"A letalidade da meningite é de 10%, mas, no auge da epidemia, caiu para 2%", afirma Rita Barradas Barata. "O diagnóstico era feito de maneira precoce e o tratamento com antibiótico reduzia o risco de morte".
Em apenas quatro dias, foram aplicadas 9 milhões de doses na região metropolitana de São Paulo. Logo, estenderam a campanha para outros municípios e estados. A imunização não era feita com seringa e agulha e, sim, com uma "pistola" injetora de vacina. "Conseguimos uma cobertura vacinal de quase 90% da população", orgulha-se José Cássio.
Além de superlotar hospitais e de fechar escolas, a epidemia de meningite teria causado outros "estragos". Um deles é a transferência dos Jogos Pan-Americanos de 1975, da cidade de São Paulo para a do México. Bem, pelo menos essa é a versão oficial. A extraoficial é contada pelo advogado Alberto Murray Neto. "Em 1975, o número de casos já tinha reduzido e o que se dizia é que a epidemia estava controlada. Em tese, a meningite não seria um impeditivo para os Jogos", revela Alberto.
Seu avô, Sylvio de Magalhães Padilha, era o então presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e vice do Comitê Olímpico Internacional (COI). Durante reunião em Brasília, foi avisado pelo ministro da Educação, Ney Braga, que não teria recursos do governo federal para os Jogos. Em suma: o Pan deveria ser cancelado, a três meses de sua realização.
"Meu avô cancelou os Jogos, sem esconder que a questão crucial era o corte de verbas", relata Alberto. Os Jogos Pan-Americanos de 1975 deixaram para a cidade o velódromo, a raia olímpica e o Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPEUSP)".
BBC

É possível pegar o coronavírus mais de uma vez?

 Tudo indica que não é possível se reinfectar, mas precisamos de mais estudos para responder essa questão com 100% de certeza.

No finalzinho de fevereiro, uma notícia vinda do Japão causou temor: autoridades do país nipônico anunciaram que uma guia turística tinha se recuperado totalmente da Covid-19 e, dias depois, os sintomas retornaram. Exames mostraram que ela voltou a testar positivo para o coronavírus (Sars-CoV-2). Um episódio parecido aconteceu na Coreia do Sul.
Na China, onde a pandemia iniciou, os relatos são mais fortes: ao menos 100 indivíduos que se curaram da doença voltaram a apresentar resultados positivos para a presença dessa ameaça microscópica. Será que o corpo não cria imunidade contra esse vírus, o que favoreceria uma reinfecção?

A verdade é que o mundo está aprendendo dia após dia com o coronavírus. Compreender como os pacientes se comportam até a alta é uma das questões-chave dessa história, pois isso tem o potencial de modificar as políticas públicas adotadas até o momento.
De acordo com a evidência científica atual, a probabilidade de uma reinfecção é remota. Quem aposta nisso é o médico Anthony Fauci, líder da força-tarefa contra o coronavírus dos Estados Unidos e um dos maiores especialistas do mundo em doenças infecciosas. 
Numa entrevista para o programa The Daily Show, do canal da televisão americana Comedy Central, ele afirmou: “Se esse vírus age".
como qualquer outro que conhecemos, uma vez que você é infectado e se recupera, cria uma imunidade que protege de futuras infecções por esse mesmo agente”. 

Como explicar então esses casos na Ásia?


O coronavírus é uma família com vários integrantes. Alguns deles infectam humanos, como é o caso Sars-CoV-2, responsável pela pandemia atual. Outros preferem morcegos, bois ou galinhas. E a experiência mostra que essa turma têm a capacidade, sim, de atazanar o mesmo ser vivo mais de uma vez. “Reinfecções não são eventos tão raros entre os coronavírus”, observa o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo
Por outro lado, segundo as pesquisas disponíveis, tudo leva a crer que esse risco de um bate e volta com o Sars-CoV-2 é bem baixo. Basta levar em conta que já são mais de 1 milhão de casos no mundo todo e ao redor de 100 relatos não confirmados de reinfecção em três países. “As análises também indicam que o novo coronavírus não possui uma alta taxa de mutações, o que certamente é importante”, acrescenta o imunologista Eduardo Finger, diretor do Laboratório de Pesquisa Experimental do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
Para entender direitinho porque a taxa de mutação dos vírus é relevante quando pensamos na criação de uma resposta imune sustentada, vamos usar como exemplo dois vilões muito comuns: o influenza e o sarampo

Comecemos com o influenza, o causador da gripe: sabe-se que ele se modifica o tempo todo. Isso significa que nosso sistema de defesa perde a capacidade de reconhecê-lo com certa velocidade. Essa, aliás, é a razão de tomarmos a vacina contra a gripe todos os anos: os subtipos de influenza em circulação na nova temporada de frio costumam ser diferentes daqueles que pintaram no ano anterior. 
A mesma coisa não acontece com o sarampo. Por ser um vírus mais estável, basta ter contato com ele uma vez (ou, de preferência, vacinar-se) para que o corpo o detecte e o ataque toda vez que o encontrar. Na maioria das vezes, duas doses do imunizante durante a infância são suficientes para oferecer proteção pelo resto da vida. 

Outra possibilidade: uma interpretação inadequada dos exames

Talvez o que esteja sendo visto como reinfecção, na verdade, seja uma conclusão precipitada dos testes de diagnóstico da Covid-19
Um dos métodos mais utilizados hoje no mundo se chama PCR (sigla em inglês para reação em cadeia da polimerase). Essa técnica rastreia a presença de pequenos trechos do código genético do vírus em amostras de um paciente. 
“Sabemos que pessoas que receberam alta após o tratamento para a Covid-19 continuam excretando pedaços do coronavírus, o que daria um resultado positivo num teste desses. Isso, por sua vez, poderia ser entendido como reinfecção quando, na verdade, trata-se de uma infecção primária que não se resolveu totalmente”, explica Brandão.

Que fique claro: o PCR é um dos melhores métodos de detecção. Ele é inclusive recomendado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Centro de controle e prevenção de doenças dos Estados Unidos.  O problema estaria na interpretação de seus resultados num contexto com milhares de pacientes em atendimento. 

Reinfecção ou ainda em recuperação do coronavírus?

Uma terceira explicação para esses relatos nos três países orientais seria o fato de o paciente ainda não estar 100% recomposto da Covid-19 e receber alta antes da hora. Ora, após invadir as células superficiais da boca, dos olhos ou do nariz, o bendito Sars-CoV-2 pode descer pelo sistema respiratório até alcançar os pulmões.
Acontece que o teste de diagnóstico dessa infecção é feito com o auxílio de uma haste flexível com algodão na ponta. Essa ferramenta é introduzida pelo nariz até alcançar o comecinho da garganta. A ideia é esfregar o cotonete ali para retirar um pouco da mucosa, que será analisada no laboratório para ver se há coronavírus ou não no pedaço.

Algumas pessoas que estão se recuperando podem passar por esse exame e não apresentar vírus nessa região das vias aéreas superiores. Mas o agente infeccioso pode estar escondido mais pra baixo, lá nos pulmões. Com o resultado negativo, o sujeito é liberado da internação e, sem os cuidados com a saúde, volta a apresentar os sintomas, uma vez que a carga viral sobe de novo. 
Seguindo essa linha de raciocínio, não estaríamos diante de um quadro de reinfecção, mas, sim, de uma doença que não foi devidamente tratada e curada

Experiência com primatas


Um estudo realizado por um convênio de cientistas chineses acrescentou informações relevantes a essa história. Na experiência, quatro macacos rhesus foram infectados com o novo coronavírus e, após alguns dias, se recuperaram bem. Na sequência, eles tiveram contato novamente com o Sars-CoV-2: nenhum experimentou uma segunda infecção. Nem mesmo quando o vírus foi colocado diretamente no organismo desses primatas.
Apesar de interessante, o trabalho merece ressalvas. “Nós somos próximos de macacos, mas não somos macacos. Há uma série de doenças infecciosas em que o sistema imune deles age de uma maneira diferente do nosso”, pondera Finger. A exposição a um vírus no laboratório também não é a mesma coisa do contato natural, no dia a dia. 
Se, por um lado, não dá pra levar as conclusões do trabalho a ferro e fogo, por outro ele aponta para uma luz no fim do túnel. “O experimento sinaliza que uma futura vacina poderá ser efetiva quando estiver disponível”, analisa Brandão. 

O que se tira de lição dessa história?

Em primeiro lugar, vale reforçar que cientistas, médicos e autoridades em saúde pública estão aprendendo em tempo real a combater o coronavírus e seus estragos. Portanto, é natural que as recomendações se modifiquem conforme o conhecimento avança e novas peças desse intrincado quebra-cabeça são descobertas. 
Caso o risco de reinfecção em larga escala seja verdadeiro e isso fique comprovado por estudos maiores e mais criteriosos (o que não aconteceu até agora), as políticas públicas colocadas em prática atualmente passarão por mudanças. “Esse cenário demandaria um número ainda maior de recursos diagnósticos e exigiria mais do sistema de saúde”, especula Brandão.
Por ora, as evidências indicam que a Covid-19 é mesmo uma doença que só se pega uma vez. O corpo parece que desenvolve, sim, uma memória imunológica para debelá-la caso o coronavírus tente uma segunda invasão. Em meio a um cenário tão desolador, eis ao menos uma boa notícia.


 

quinta-feira, 26 de março de 2020

Uma mulher latina, estudante de enfermagem, inventou o álcool gel

Os mesmos motivos que o levaram a ser inventado fazem atualmente, durante a pandemia de coronavírus, do álcool gel um dos produtos mais procurados em todo o planeta: a mobilidade e a facilidade de desinfetar as mãos. Vale lembrar que o bom e velho sabão, lavando intensamente as mãos por ao menos 20 segundos, é mais eficaz para impedir a disseminação do vírus do que o álcool gel, mas para quem precisa sair de casa, trata-se de uma solução eficaz e importante quando se está sem acesso a uma pia. Poucos sabem, porém, que a invenção do álcool gel foi feita por uma mulher e de origem latina: a enfermeira Lupe Hernandez, então estudante de enfermagem em Bakersfield, nos EUA, em 1966.



A enfermeira Lupe Hernandez
A preocupação de Hernandez era justamente sobre a disponibilidade de água e sabão para os profissionais de saúde, para todo o processo, antes e depois, de seus contatos com pacientes. Foi diante desse quadro que ela concluiu que uma versão em gel do álcool, que fosse portátil e eficaz, poderia ser uma solução para tal dilema – e que ainda poderia se tornar um sucesso comercial, como se tornou. O álcool mata germes e bactérias e evapora, facilitando a vida de quem os usa, em especial dos profissionais de saúde.
Era impossível, 54 anos atrás, que Hernandez pudesse prever o próprio coronavírus, mas é evidente que ela previu a utilidade de sua invenção: em 2015 o mercado de álcool gel valia 250 milhões de dólares somente nos EUA – e hoje o valor deve ter bem mais do que dobrado. Curiosamente, pouco se sabe hoje sobre Lupe Hernandez, se ela lucrou em proporção ao sucesso de sua invenção, ou mesmo se ela continua viva – mas o fato é que sua invenção pode ajudar a manter muita gente com vida atualmente.



quarta-feira, 25 de março de 2020

Por que o coronavírus é mais perigoso para os idosos

Um idoso protegido com máscara em Valência, na Espanha.
 
A pandemia de coronavírus que se expande rapidamente afeta com gravidade os idosos. Dados obtidos a partir do surto inicial na China e mais tarde na Itália mostram que os infectados com menos de 60 anos têm um risco baixo, embora não seja nulo, de morrer de Covid-19. Curiosamente, as crianças pequenas não parecem estar em maior risco de complicações graves da doença causada por esse novo coronavírus, em contraste com o que ocorre com outros vírus, como a gripe sazonal.
No entanto, as estatísticas se tornam mais desalentadoras à medida que os pacientes envelhecem. Enquanto pacientes entre 60-70 anos têm uma probabilidade de 0,4% de morrer, aqueles com idades entre 70 e 80 anos têm 1,3% e os com mais de 80 anos, de 3,6%. Embora isso não pareça uma probabilidade muito alta de morte, no atual surto que a Itália está enfrentando, 83% dos que sucumbiram à infecção pela Covid-19 tinham mais de 60 anos de idade.
Portanto, o novo coronavírus SARS-CoV-2, que causa a Covid-19, é um patógeno muito sério para quem tem mais de 60 anos de idade. Enquanto continua a se espalhar, esse grupo mais velho continuará correndo o risco de ficar gravemente doente e morrer.
O que faz com que um vírus como este representem maior risco para os idosos? Acredita-se que seja devido a alterações sofridas pelo sistema imunológico humano à medida que envelhece.
 

As ferramentas do corpo para combater infecções

Na vida cotidiana, o corpo experimenta um bombardeio constante de bactérias, fungos e vírus que nos tornam doentes, os patógenos. Um corpo humano é um lugar maravilhoso para esses organismos crescerem e prosperarem, pois lhes proporciona um ambiente agradável, quente e rico em nutrientes.
É aí que o sistema imunológico entra em ação. É o sistema de defesa do corpo contra esse tipo de invasor. Antes mesmo de nascer, o corpo começa a produzir dois tipos especializados de células sanguíneas, linfócitos B e linfócitos T, capazes de reconhecer os patógenos e ajudar tipos especializados de células sanguíneas, linfócitos B e linfócitos T, capazes de reconhecer os patógenos e ajudar a bloquear seu crescimento.
Durante uma infecção, os linfócitos B podem se multiplicar e produzir anticorpos que aderem aos patógenos e bloqueiam sua capacidade de se espalhar pelo corpo. A função dos linfócitos T é reconhecer as células infectadas e matá-las. Juntos, eles formam o que os cientistas chamam de sistema imunológico “adaptativo”.
É possível que o seu médico tenha pedido alguns exames para verificar os níveis dos seus glóbulos brancos. Servem para medir se você tem mais linfócitos B e T do que o habitual, provavelmente porque eles estão lutando contra uma infecção.
Pessoas muito jovens não têm muitos linfócitos B ou T. Para o corpo delas pode ser um desafio controlar a infecção porque ele simplesmente não está acostumado com tal tarefa. À medida que amadurece, o sistema imunológico adaptativo aprende a reconhecer os patógenos e a lidar com essas invasões constantes, nos permitindo combater a infecção de maneira rápida e eficaz.
Embora os glóbulos brancos sejam poderosos protetores para os seres humanos, não são suficientes. Por sorte, nosso sistema imunológico possui outra camada, denominada resposta imunológica “inata”. Todas as células têm seu próprio sistema imunológico em miniatura que lhes permite responder diretamente aos patógenos com mais rapidez do que a necessária para mobilizar a resposta adaptativa.
A resposta imune inata está pronta para se lançar sobre tipos de moléculas que são comumente encontradas em bactérias e vírus, mas não nas células humanas. Quando uma célula detecta essas moléculas invasoras, desencadeia a produção de interferon, uma proteína antiviral. O interferon provoca a morte da célula infectada, limitando a infecção.
Outras células imunológicas inatas, chamadas monócitos, agem como uma espécie de porteiro celular, livrando-se de todas as células infectadas que encontram e enviando sinais à resposta imune adaptativa para que se ponha em marcha. O sistema imunológico inato e o adaptativo podem funcionar em conjunto como uma máquina bem lubrificada para detectar e eliminar patógenos.

Os sistemas imunológicos mais velhos são mais fracos

Quando um patógeno invade o corpo, a diferença entre a doença e a saúde se torna uma corrida entre a velocidade em que tal patógeno é capaz de se expandir em seu interior e a rapidez com a qual a resposta imunológica é capaz de reagir sem causar muitos danos colaterais.
À medida que envelhecemos, as respostas do sistema imunológico inato e do adaptativo mudam, alterando esse equilíbrio. Os monócitos dos indivíduos mais velhos produzem menos interferon em resposta à infecção viral. É mais difícil para eles matar as células infectadas e transmitir sinais à resposta imune adaptativa para que se ponha em marcha.
A inflamação crônica de baixo grau que comumente ocorre durante o envelhecimento também prejudica a capacidade da resposta imune adaptativa e inata de reagir contra os patógenos. É um pouco semelhante a se acostumar, com o passar do tempo, a ruídos irritantes.
Com o envelhecimento, a redução da “capacidade de atenção" da resposta imune inata e da adaptativa torna mais difícil que o corpo responda à infecção viral, dando vantagem ao vírus. Os vírus podem tirar proveito do atraso do sistema imunológico em responder e, assim, se apoderar rapidamente do corpo, causando uma doença grave e a morte.

O distanciamento social é vital para as pessoas vulneráveis

Dada a dificuldade que os idosos têm para controlar a infecção viral, a melhor opção é, desde o início, evitar ser infectados. E é aí que a ideia de distanciamento social adquire importância, em especial no que diz respeito à Covid-19.
A Covid-19 é causada por um vírus respiratório que contagia principalmente pela tosse, que pode espalhar pequenas gotas de saliva que contêm vírus. As gotículas mais pesadas caem rapidamente no chão. Gotas muito pequenas secam. Gotas de tamanho intermediário são as mais preocupantes, porque conseguem flutuar no ar mais de um metro antes de secarem. Essas gotas podem ser inaladas e entrar nos pulmões.
Manter uma distância de pelo menos um metro e meio de outras pessoas ajuda a reduzir significativamente o risco de ser infectado por essas gotículas de aerossóis. Mas ainda existe a possibilidade de o vírus contaminar as superfícies em que a pessoa infectada tocou ou na qual tossiu. Consequentemente, a melhor maneira de proteger idosos vulneráveis ​​e as pessoas imunocomprometidas é ficar longe delas até que o risco desapareça.
Brian Geiss é professor associado de microbiologia, imunologia e patologia na Universidade Estadual do Colorado e recebe financiamento do National Institutes of Health.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês na The Conversation.
El País