quinta-feira, 26 de março de 2020

Uma mulher latina, estudante de enfermagem, inventou o álcool gel

Os mesmos motivos que o levaram a ser inventado fazem atualmente, durante a pandemia de coronavírus, do álcool gel um dos produtos mais procurados em todo o planeta: a mobilidade e a facilidade de desinfetar as mãos. Vale lembrar que o bom e velho sabão, lavando intensamente as mãos por ao menos 20 segundos, é mais eficaz para impedir a disseminação do vírus do que o álcool gel, mas para quem precisa sair de casa, trata-se de uma solução eficaz e importante quando se está sem acesso a uma pia. Poucos sabem, porém, que a invenção do álcool gel foi feita por uma mulher e de origem latina: a enfermeira Lupe Hernandez, então estudante de enfermagem em Bakersfield, nos EUA, em 1966.



A enfermeira Lupe Hernandez
A preocupação de Hernandez era justamente sobre a disponibilidade de água e sabão para os profissionais de saúde, para todo o processo, antes e depois, de seus contatos com pacientes. Foi diante desse quadro que ela concluiu que uma versão em gel do álcool, que fosse portátil e eficaz, poderia ser uma solução para tal dilema – e que ainda poderia se tornar um sucesso comercial, como se tornou. O álcool mata germes e bactérias e evapora, facilitando a vida de quem os usa, em especial dos profissionais de saúde.
Era impossível, 54 anos atrás, que Hernandez pudesse prever o próprio coronavírus, mas é evidente que ela previu a utilidade de sua invenção: em 2015 o mercado de álcool gel valia 250 milhões de dólares somente nos EUA – e hoje o valor deve ter bem mais do que dobrado. Curiosamente, pouco se sabe hoje sobre Lupe Hernandez, se ela lucrou em proporção ao sucesso de sua invenção, ou mesmo se ela continua viva – mas o fato é que sua invenção pode ajudar a manter muita gente com vida atualmente.



quarta-feira, 25 de março de 2020

Por que o coronavírus é mais perigoso para os idosos

Um idoso protegido com máscara em Valência, na Espanha.
 
A pandemia de coronavírus que se expande rapidamente afeta com gravidade os idosos. Dados obtidos a partir do surto inicial na China e mais tarde na Itália mostram que os infectados com menos de 60 anos têm um risco baixo, embora não seja nulo, de morrer de Covid-19. Curiosamente, as crianças pequenas não parecem estar em maior risco de complicações graves da doença causada por esse novo coronavírus, em contraste com o que ocorre com outros vírus, como a gripe sazonal.
No entanto, as estatísticas se tornam mais desalentadoras à medida que os pacientes envelhecem. Enquanto pacientes entre 60-70 anos têm uma probabilidade de 0,4% de morrer, aqueles com idades entre 70 e 80 anos têm 1,3% e os com mais de 80 anos, de 3,6%. Embora isso não pareça uma probabilidade muito alta de morte, no atual surto que a Itália está enfrentando, 83% dos que sucumbiram à infecção pela Covid-19 tinham mais de 60 anos de idade.
Portanto, o novo coronavírus SARS-CoV-2, que causa a Covid-19, é um patógeno muito sério para quem tem mais de 60 anos de idade. Enquanto continua a se espalhar, esse grupo mais velho continuará correndo o risco de ficar gravemente doente e morrer.
O que faz com que um vírus como este representem maior risco para os idosos? Acredita-se que seja devido a alterações sofridas pelo sistema imunológico humano à medida que envelhece.
 

As ferramentas do corpo para combater infecções

Na vida cotidiana, o corpo experimenta um bombardeio constante de bactérias, fungos e vírus que nos tornam doentes, os patógenos. Um corpo humano é um lugar maravilhoso para esses organismos crescerem e prosperarem, pois lhes proporciona um ambiente agradável, quente e rico em nutrientes.
É aí que o sistema imunológico entra em ação. É o sistema de defesa do corpo contra esse tipo de invasor. Antes mesmo de nascer, o corpo começa a produzir dois tipos especializados de células sanguíneas, linfócitos B e linfócitos T, capazes de reconhecer os patógenos e ajudar tipos especializados de células sanguíneas, linfócitos B e linfócitos T, capazes de reconhecer os patógenos e ajudar a bloquear seu crescimento.
Durante uma infecção, os linfócitos B podem se multiplicar e produzir anticorpos que aderem aos patógenos e bloqueiam sua capacidade de se espalhar pelo corpo. A função dos linfócitos T é reconhecer as células infectadas e matá-las. Juntos, eles formam o que os cientistas chamam de sistema imunológico “adaptativo”.
É possível que o seu médico tenha pedido alguns exames para verificar os níveis dos seus glóbulos brancos. Servem para medir se você tem mais linfócitos B e T do que o habitual, provavelmente porque eles estão lutando contra uma infecção.
Pessoas muito jovens não têm muitos linfócitos B ou T. Para o corpo delas pode ser um desafio controlar a infecção porque ele simplesmente não está acostumado com tal tarefa. À medida que amadurece, o sistema imunológico adaptativo aprende a reconhecer os patógenos e a lidar com essas invasões constantes, nos permitindo combater a infecção de maneira rápida e eficaz.
Embora os glóbulos brancos sejam poderosos protetores para os seres humanos, não são suficientes. Por sorte, nosso sistema imunológico possui outra camada, denominada resposta imunológica “inata”. Todas as células têm seu próprio sistema imunológico em miniatura que lhes permite responder diretamente aos patógenos com mais rapidez do que a necessária para mobilizar a resposta adaptativa.
A resposta imune inata está pronta para se lançar sobre tipos de moléculas que são comumente encontradas em bactérias e vírus, mas não nas células humanas. Quando uma célula detecta essas moléculas invasoras, desencadeia a produção de interferon, uma proteína antiviral. O interferon provoca a morte da célula infectada, limitando a infecção.
Outras células imunológicas inatas, chamadas monócitos, agem como uma espécie de porteiro celular, livrando-se de todas as células infectadas que encontram e enviando sinais à resposta imune adaptativa para que se ponha em marcha. O sistema imunológico inato e o adaptativo podem funcionar em conjunto como uma máquina bem lubrificada para detectar e eliminar patógenos.

Os sistemas imunológicos mais velhos são mais fracos

Quando um patógeno invade o corpo, a diferença entre a doença e a saúde se torna uma corrida entre a velocidade em que tal patógeno é capaz de se expandir em seu interior e a rapidez com a qual a resposta imunológica é capaz de reagir sem causar muitos danos colaterais.
À medida que envelhecemos, as respostas do sistema imunológico inato e do adaptativo mudam, alterando esse equilíbrio. Os monócitos dos indivíduos mais velhos produzem menos interferon em resposta à infecção viral. É mais difícil para eles matar as células infectadas e transmitir sinais à resposta imune adaptativa para que se ponha em marcha.
A inflamação crônica de baixo grau que comumente ocorre durante o envelhecimento também prejudica a capacidade da resposta imune adaptativa e inata de reagir contra os patógenos. É um pouco semelhante a se acostumar, com o passar do tempo, a ruídos irritantes.
Com o envelhecimento, a redução da “capacidade de atenção" da resposta imune inata e da adaptativa torna mais difícil que o corpo responda à infecção viral, dando vantagem ao vírus. Os vírus podem tirar proveito do atraso do sistema imunológico em responder e, assim, se apoderar rapidamente do corpo, causando uma doença grave e a morte.

O distanciamento social é vital para as pessoas vulneráveis

Dada a dificuldade que os idosos têm para controlar a infecção viral, a melhor opção é, desde o início, evitar ser infectados. E é aí que a ideia de distanciamento social adquire importância, em especial no que diz respeito à Covid-19.
A Covid-19 é causada por um vírus respiratório que contagia principalmente pela tosse, que pode espalhar pequenas gotas de saliva que contêm vírus. As gotículas mais pesadas caem rapidamente no chão. Gotas muito pequenas secam. Gotas de tamanho intermediário são as mais preocupantes, porque conseguem flutuar no ar mais de um metro antes de secarem. Essas gotas podem ser inaladas e entrar nos pulmões.
Manter uma distância de pelo menos um metro e meio de outras pessoas ajuda a reduzir significativamente o risco de ser infectado por essas gotículas de aerossóis. Mas ainda existe a possibilidade de o vírus contaminar as superfícies em que a pessoa infectada tocou ou na qual tossiu. Consequentemente, a melhor maneira de proteger idosos vulneráveis ​​e as pessoas imunocomprometidas é ficar longe delas até que o risco desapareça.
Brian Geiss é professor associado de microbiologia, imunologia e patologia na Universidade Estadual do Colorado e recebe financiamento do National Institutes of Health.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês na The Conversation.
El País

Metade das praias de areia do planeta está ameaçada pela mudança climática

Erosão provocada pelo temporal Emma em 2018 na praia de Camposoto (Cádiz).
 
O que quer que os humanos façam com suas emissões de gases, a maioria das praias de areia do planeta encolherá. Em apenas 30 anos, o mar arrebatará em média até 100 metros da areia por causa das mudanças climáticas, segundo um estudo. E no pior dos cenários climáticos, a cifra poderia mais que dobrar até o final do século. Entre os países que perderão mais praias estão o México, o Chile e a Argentina a partir da evolução da linha da costa dos últimos 35 anos, medida por satélites, um grupo de pesquisadores modelou o impacto que as mudanças climáticas terão nas praias de areia até 2050 e 2100. Atualmente, e deixando de lado as regiões antártica e ártica, 31% da costa é formada por faixa de areia. Estudos anteriores estimaram quantas estão se retraindo, pela erosão ou por ações humanas, e quantas estão se expandindo, por contribuição natural ou ação humana. Agora, este estudo, publicado na Nature Climate Change, adiciona à equação os impactos derivados do aquecimento global, especialmente os de eventos climáticos extremos (tempestades, inundações ...) e da elevação do nível do mar.
As praias encolherão sim ou sim. Mas, dependendo do futuro escolhido pelos seres humanos, um cenário de baixas emissões ou outro no qual nada é feito contra as mudanças climáticas, elas diminuirão menos ou mais. Neste último caso, para 2050 os resultados do trabalho mostram que a faixa de areia se reduzirá em média 99,2 metros. Mas a largura que o mar poderia abocanhar poderia se aproximar de 250 metros até o final do século. No entanto, se os objetivos dos Acordos de Paris sobre redução de emissões fossem cumpridos, as perdas poderiam ser mitigadas em até 40%.
Embora a perda de litoral arenoso seja generalizada, há grandes diferenças geográficas. As praias perderão mais de 150 metros em regiões como o leste da América do Norte, as praias da Amazônia e o sudeste do continente americano. O recuo será superior a 300 metros nas Pequenas Antilhas ou no sul da Ásia. Por países, haverá nações como Gâmbia, Paquistão e El Salvador que perderão mais de 80% de suas praias. Mas, em termos absolutos, serão as costas arenosas do Canadá e da Austrália que sofrerão mais. Nos dois casos, o mar avançará às custas da areia em mais de 15.000 quilômetros de litoral. Também aparecem nas áreas mais ameaçadas milhares de quilômetros de praias na Argentina (até 4.400 quilômetros), México (5.100) e Chile (até 7.000).
“Até agora, as principais causas do recuo das praias eram os reservatórios e as barragens, que bloqueiam o sedimento e não o deixam chegar às praias”, explica o pesquisador da Universidade de Cádiz e coautor do estudo Theocharis Plomaritis. Mas isso está sendo alterado pelas mudanças climáticas, que surgem como o principal inimigo da faixa de areia no futuro imediato.
Um dos efeitos do aquecimento global é o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos. Como ficou demonstrado em janeiro passado com a tempestade Gloria, a erosão costeira pode ser enorme. Os autores do estudo incorporaram a seu modelo os dados de cerca de 100 milhões de tempestades marinhas para calcular o potencial de erosão destes fenômenos. “Seu impacto geralmente é temporário, a praia se recupera se lhe damos tempo”, diz Plomaritis. Mas, no futuro, um segundo efeito das mudanças climáticas “bloqueará a recuperação natural”, acrescenta ele. Trata-se da elevação do nível do mar.
O degelo das regiões polares está elevando as águas a uma taxa de cerca de três milímetros por ano. Além disso, o aumento das temperaturas faz com que a água do mar se expanda e ocupe mais espaço às custas das praias. Os cientistas e engenheiros que estudam a erosão costeira estão bem cientes de uma lei natural, a chamada regra de Bruun. Na sua versão mais simples, estipula que, dependendo da inclinação da praia, esta recua entre 50 e 100 vezes o que o nível do mar subir.
“O aumento médio mundial do nível do mar é responsável por pelo menos 73% das mudanças", responde por email o pesquisador do Centro Comum de Pesquisa (JRC) da Comissão Europeia e principal autor do estudo, Michalis Vousdoukas. Embora existam algumas áreas em que o estudo espera a recuperação de praias de modo natural, o pequeno avanço da praia, como o que ocorre em grande parte do litoral da China, está sendo, é e será obra humana.
El País

O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-Chul Han

Um oficial de polícia vigia diante de um cartaz dia 23 de janeiro em Pequim.

O coronavírus está colocando nosso sistema à prova. Ao que parece a Ásia controla melhor a epidemia do que a Europa. Em Hong Kong, Taiwan e Singapura há poucos infectados. Em Taiwan foram registrados 108 casos e 193 em Hong Kong. Na Alemanha, pelo contrário, após um período muito mais breve já existem 19.000 casos confirmados, e na Espanha 19.980 (dados de 20 de março). A Coreia do Sul já superou a pior fase, da mesma forma que o Japão. Até a China, o país de origem da pandemia, já está com ela bem controlada. Mas Taiwan e a Coreia não decretaram a proibição de sair de casa e as lojas e restaurantes não fecharam. Enquanto isso começou um êxodo de asiáticos que saem da Europa. Chineses e coreanos querem regressar aos seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços dos voos multiplicaram. Já quase não é possível conseguir passagens aéreas para a China e a Coreia.
A Europa está fracassando. Os números de infectados aumentam exponencialmente. Parece que a Europa não pode controlar a pandemia. Na Itália morrem diariamente centenas de pessoas. Retiram os respiradores dos pacientes idosos para ajudar os jovens. Mas também vale observar ações inúteis. Os fechamentos de fronteiras são evidentemente uma expressão desesperada de soberania. Nós nos sentimos de volta à época da soberania. O soberano é quem decide sobre o estado de exceção. É o soberano que fecha fronteiras. Mas isso é uma vã tentativa de soberania que não serve para nada. Seria muito mais útil cooperar intensamente dentro da Eurozona do que fechar fronteiras alucinadamente. Ao mesmo tempo a Europa também decretou a proibição da entrada a estrangeiros: um ato totalmente absurdo levando em consideração o fato de que a Europa é justamente o local ao qual ninguém quer ir. No máximo, seria mais sensato decretar a proibição de saídas de europeus, para proteger o mundo da Europa. Depois de tudo, a Europa é nesse momento o epicentro da pandemia.

As vantagens da Ásia

Em comparação com a Europa, quais vantagens o sistema da Ásia oferece que são eficientes para combater a pandemia? Estados asiáticos como o Japão, Coreia,   Taiwan e Singapura têm uma mentalidade autoritária, que vem de sua tradição cultural (confucionismo). As pessoas são menos relutantes e mais obedientes do que na Europa. Também confiam mais no Estado. E não somente na China, como também na Europa e no Japão a vida cotidiana está organizada muito mais rigidamente do que na Europa. Principalmente para enfrentar o vírus os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital. Suspeitam que o big data pode ter um enorme potencial para se defender da pandemia. Poderíamos dizer que na Ásia as epidemias não são combatidas somente pelos virologistas e epidemiologistas, e sim principalmente pelos especialistas em informática e macrodados. Uma mudança de paradigma da qual a Europa ainda não se inteirou. Os apologistas da vigilância digital proclamariam que o big data salva vidas humanas.
A consciência crítica diante da vigilância digital é praticamente inexistente na Ásia. Já quase não se fala de proteção de dados, incluindo Estados liberais como o Japão e a Coreia. Ninguém se irrita pelo frenesi das autoridades em recopilar dados. Enquanto isso a China introduziu um sistema de crédito social inimaginável aos europeus, que permitem uma valorização e avaliação exaustiva das pessoas. Cada um deve ser avaliado em consequência de sua conduta social. Na China não há nenhum momento da vida cotidiana que não esteja submetido à observação. Cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais são controlados. Quem atravessa no sinal vermelho, quem tem contato com críticos do regime e quem coloca comentários críticos nas redes sociais perde pontos. A vida, então, pode chegar a se tornar muito perigosa. Pelo contrário, quem compra pela Internet alimentos saudáveis e lê jornais que apoiam o regime ganha pontos. Quem tem pontuação suficiente obtém um visto de viagem e créditos baratos. Pelo contrário, quem cai abaixo de um determinado número de pontos pode perder seu trabalho. Na China essa vigilância social é possível porque ocorre uma irrestrita troca de dados entre os fornecedores da Internet e de telefonia celular e as autoridades. Praticamente não existe a proteção de dados. No vocabulário dos chineses não há o termo “esfera privada”.
Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas delas com uma técnica muito eficiente de reconhecimento facial. Captam até mesmo as pintas no rosto. Não é possível escapar da câmera de vigilância. Essas câmeras dotadas de inteligência artificial podem observar e avaliar qualquer um nos espaços públicos, nas lojas, nas ruas, nas estações e nos aeroportos.
Toda a infraestrutura para a vigilância digital se mostrou agora ser extremamente eficaz para conter a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim é captado automaticamente por uma câmera que mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante todas as pessoas que estavam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação em seus celulares. Não é por acaso que o sistema sabe quem estava sentado em qual local no trem. As redes sociais contam que estão usando até drones para controlar as quarentenas. Se alguém rompe clandestinamente a quarentena um drone se dirige voando em sua direção e ordena que regresse à sua casa. Talvez até lhe dê uma multa e a deixe cair voando, quem sabe. Uma situação que para os europeus seria distópica, mas que, pelo visto, não tem resistência na China.
Na China e em outros Estados asiáticos como a Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan e Japão não existe uma consciência crítica diante da vigilância digital e o big data. A digitalização os embriaga diretamente. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o coletivismo. Não há um individualismo acentuado. O individualismo não é a mesma coisa que o egoísmo, que evidentemente também está muito propagado na Ásia.
Ao que parece o big data é mais eficaz para combater o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que estão sendo feitos nesses momentos na Europa. Graças à proteção de dados, entretanto, não é possível na Europa um combate digital do vírus comparável ao asiático. Os fornecedores chineses de telefonia celular e de Internet compartilham os dados sensíveis de seus clientes com os serviços de segurança e com os ministérios de saúde. O Estado sabe, portanto, onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que procuro, em que penso, o que como, o que compro, aonde me dirijo. É possível que no futuro o Estado controle também a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue etc. Uma biopolítica digital que acompanha a psicopolítica digital que controla ativamente as pessoas.
É possível que no futuro o Estado controle também a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue
Em Wuhan se formaram milhares de equipes de pesquisa digitais que procuram possíveis infectados baseando-se somente em dados técnicos. Tendo como base, unicamente, análises de macrodados averiguam os que são potenciais infectados, os que precisam continuar sendo observados e eventualmente isolados em quarentena. O futuro também está na digitalização no que se refere à pandemia. Pela epidemia talvez devêssemos redefinir até mesmo a soberania. É soberano quem dispõe de dados. Quando a Europa proclama o estado de alarme e fecha fronteiras continua aferrada a velhos modelos de soberania.
Não somente na China, como também em outros países asiáticos a vigilância digital é profundamente utilizada para conter a epidemia. Em Taiwan o Estado envia simultaneamente a todos um SMS para localizar as pessoas que tiveram contato com infectados e para informar sobre os lugares e edifícios em que existiram pessoas contaminadas. Já em uma fase muito inicial, Taiwan utilizou uma conexão de diversos dados para localizar possíveis infectados em função das viagens que fizeram. Na Coreia quem se aproxima de um edifício em que um infectado esteve recebe através do “Corona-app” um sinal de alarme. Todos os lugares em que infectados estiveram estão registrados no aplicativo. Não são levadas muito em consideração a proteção de dados e a esfera privada. Em todos os edifícios da Coreia foram instaladas câmeras de vigilância em cada andar, em cada escritório e em cada loja. É praticamente impossível se mover em espaços públicos sem ser filmado por uma câmera de vídeo. Com os dados do telefone celular e do material filmado por vídeo é possível criar o perfil de movimento completo de um infectado. São publicados os movimentos de todos os infectados. Casos amorosos secretos podem ser revelados. Nos escritórios do Ministério da Saúde coreano existem pessoas chamadas “tracker” que dia e noite não fazem outra coisa a não ser olhar o material filmado por vídeo para completar o perfil do movimento dos infectados e localizar as pessoas que tiveram contato com eles.
 
Chineses, todos de máscara, fazem fila no ponto de ônibus em Pequim, em 20 de março.
Uma diferença chamativa entre a Ásia e a Europa são principalmente as máscaras protetoras. Na Coreia quase não existe quem ande por aí sem máscaras respiratórias especiais capazes de filtrar o ar de vírus. Não são as habituais máscaras cirúrgicas, e sim máscaras protetoras especiais com filtros, que também são utilizadas pelos médicos que tratam os infectados. Durante as últimas semanas, o tema prioritário na Coreia era o fornecimento de máscaras à população. Diante das farmácias enormes filas se formaram. Os políticos eram avaliados em função da rapidez com que eram fornecidas a toda a população. Foram construídas a toda pressa novas máquinas para sua fabricação. Por enquanto parece que o fornecimento funciona bem. Há até mesmo um aplicativo que informa em qual farmácia próxima ainda se pode conseguir máscaras. Acho que as máscaras protetoras fornecidas na Ásia a toda a população contribuíram decisivamente para conter a epidemia.
Os coreanos usam máscaras protetoras antivírus até mesmo nos locais de trabalho. Até os políticos fazem suas aparições públicas somente com máscaras protetoras. O presidente coreano também a usa para dar o exemplo, incluindo em suas entrevistas coletivas. Na Coreia quem não a usa é repreendido. Na Europa, pelo contrário, frequentemente se diz que não servem para muita coisa, o que é um absurdo. Por que então os médicos usam as máscaras protetoras? Mas é preciso trocar de máscara frequentemente, porque quando umedecem perdem sua função filtradora. Os coreanos, entretanto, já desenvolveram uma “máscara ao coronavírus” feita de nanofiltros que podem ser lavados. O que se diz é que podem proteger as pessoas do vírus durante um mês. Na verdade, é uma solução muito boa enquanto não existem vacinas e medicamentos.
Está surgindo uma sociedade de duas classes. Quem tem carro próprio se expõe a menos riscos
Na Europa, pelo contrário, até mesmo os médicos precisam viajar à Rússia para consegui-las. Macron mandou confiscar máscaras para distribui-las entre os funcionários da área de saúde. Mas o que acabaram recebendo foram máscaras normais sem filtro com a indicação de que bastariam para proteger do coronavírus, o que é uma mentira. A Europa está fracassando. De que adianta fechar lojas e restaurantes se as pessoas continuam se aglomerando no metrô e no ônibus durante as horas de pico? Como guardar a distância necessária assim? Até nos supermercados é quase impossível. Em uma situação como essa, as máscaras protetoras realmente salvariam vidas humanas. Está surgindo uma sociedade de duas classes. Quem tem carro próprio se expõe a menos riscos. As máscaras normais também seriam de muita utilidade se os infectados as usassem, porque dessa maneira não propagariam o vírus.
Nos países europeus quase ninguém usa máscara. Há alguns que as usam, mas são asiáticos. Meus conterrâneos residentes na Europa se queixam de que são olhados com estranheza quando as usam. Por trás disso há uma diferença cultural. Na Europa impera um individualismo que traz atrelado o costume de andar com o rosto descoberto. Os únicos que estão mascarados são os criminosos. Mas agora, vendo imagens da Coreia, me acostumei tanto a ver pessoas mascaradas que o rosto descoberto de meus concidadãos europeus me parece quase obsceno. Eu também gostaria de usar máscara protetora, mas aqui já não existem.
No passado, a fabricação de máscara, da mesma forma que tantos outros produtos, foi externalizada à China. Por isso agora não se conseguem máscaras na Europa. Os Estados asiáticos estão tentando prover toda a população com máscaras protetoras. Na China, quando também começaram a escassear, fábricas chegaram a ser reequipadas para produzir máscaras. Na Europa nem mesmo os funcionários da área de saúde as conseguem. Enquanto as pessoas continuarem se aglomerando nos ônibus e metrôs para ir ao trabalho sem máscaras protetoras, a proibição de sair de casa logicamente não adiantará muito. Como é possível guardar a distância necessária nos ônibus e no metrô nos horários de pico? E uma lição que deveríamos tirar da pandemia deveria ser a conveniência de voltar a trazer à Europa a produção de determinados produtos, como máscaras protetoras, remédios e produtos farmacêuticos.
 
O presidente da Coreia do Su, terceiro na imagem, em 25 de fevereiro.
Apesar de todo o risco, que não deve ser minimizado, o pânico desatado pela pandemia de coronavírus é desproporcional. Nem mesmo a “gripe espanhola”, que foi muito mais letal, teve efeitos tão devastadores sobre a economia. A que isso se deve na realidade? Por que o mundo reage com um pânico tão desmesurado a um vírus? Emmanuel Macron fala até de guerra e do inimigo invisível que precisamos derrotar. Estamos diante de um retorno do inimigo? A gripe espanhola se desencadeou em plena Primeira Guerra Mundial. Naquele momento todo o mundo estava cercado de inimigos. Ninguém teria associado a epidemia com uma guerra e um inimigo. Mas hoje vivemos em uma sociedade totalmente diferente.
Na verdade, vivemos durante muito tempo sem inimigos. A Guerra Fria terminou há muito tempo. Ultimamente até o terrorismo islâmico parecia ter se deslocado a áreas distantes. Há exatamente dez anos afirmei em meu ensaio Sociedade do Cansaço a tese de que vivemos em uma época em que o paradigma imunológico perdeu sua vigência, baseada na negatividade do inimigo. Como nos tempos da Guerra Fria, a sociedade organizada imunologicamente se caracteriza por viver cercada de fronteiras e de cercas, que impedem a circulação acelerada de mercadorias e de capital. A globalização suprime todos esses limites imunitários para dar caminho livre ao capital. Até mesmo a promiscuidade e a permissividade generalizadas, que hoje se propagam por todos os âmbitos vitais, eliminam a negatividade do desconhecido e do inimigo. Os perigos não espreitam hoje da negatividade do inimigo, e sim do excesso de positividade, que se expressa como excesso de rendimento, excesso de produção e excesso de comunicação. A negatividade do inimigo não tem lugar em nossa sociedade ilimitadamente permissiva. A repressão aos cuidados de outros abre espaço à depressão, a exploração por outros abre espaço à autoexploração voluntária e à auto-otimização. Na sociedade do rendimento se guerreia sobretudo contra si mesmo.

Limites imunológicos e fechamento de fronteiras

Pois bem, em meio a essa sociedade tão enfraquecida imunologicamente pelo capitalismo global o vírus irrompe de supetão. Em pânico, voltamos a erguer limites imunológicos e fechar fronteiras. O inimigo voltou. Já não guerreamos contra nós mesmos. E sim contra o inimigo invisível que vem de fora. O pânico desmedido causado pelo vírus é uma reação imunitária social, e até global, ao novo inimigo. A reação imunitária é tão violenta porque vivemos durante muito tempo em uma sociedade sem inimigos, em uma sociedade da positividade, e agora o vírus é visto como um terror permanente.
Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, aqui é um vírus real e não um vírus de computador, e que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a se fazer notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reação de pânico ao vírus se explica em função dessa comoção pela realidade.
Espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês.
A reação de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que já é inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um pânico reprimido que estava aguardando a explosão. Provavelmente o vírus não é mais do que a gota que transbordou o copo. O que se reflete no pânico do mercado financeiro não é tanto o medo ao vírus quanto o medo a si mesmo. O crash poderia ter ocorrido também sem o vírus. Talvez o vírus seja somente o prelúdio de um crash muito maior.
Žižek afirma que o vírus deu um golpe mortal no capitalismo, e evoca um comunismo obscuro. Acredita até mesmo que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek se engana. Nada disso acontecerá. A China poderá agora vender seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema ainda mais orgulhosamente. E após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão pisoteando o planeta. O vírus não pode substituir a razão. É possível que chegue até ao Ocidente o Estado policial digital ao estilo chinês. Com já disse Naomi Klein, a comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente.
O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta.
Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta sul-coreano que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim. Autor, entre outras obras, de ‘Sociedade do Cansaço’, publicou há um ano ‘Loa a la tierra’, na editora Herder.
El País