terça-feira, 29 de maio de 2018

A 'Disneylândia' de Sadam: como ditadores exploram ruínas históricas

 
Mural de Hussein
 
De tão reluzente, torna-se difícil mirar o palácio que se ergue em fachadas angulares e janelas abertas sob o intenso sol do Iraque. Uma curta estrada em espiral leva a seu topo, onde cascalhos soltos são cobertos por sombras de oliveiras e palmeiras que crescem livres nos jardins outrora luxuosos.
Esse foi um dos palácios mais opulentos de Saddam Hussein. Em seu interior, restam marcas de sua extravagância nas portas e revestimentos delicadamente esculpidos e no grande candelabro ainda pendurado sobre o salão de entrada.
Agora, as paredes estão pichadas de grafite, crianças das redondezas jogam futebol em espaços que produzem eco, e pedaços de vidro do candelabro se espalham pelo chão. E assim o palácio do então poderoso ditador se tornou uma ruína vazia.
 
Da varanda do quarto do ditador, as planícies se alongam e outra ruína aparece à vista: as paredes quebradas de onde, há 2.500 anos, a cidade de Babilônia governava o mundo.
 
Ruínas de Hussein
 
A surpreendente vista não é coincidência. A intenção era que visitantes olhassem para as ruínas da Babilônia e se dessem conta de que estavam diante de um grande líder cujo legado duraria por milênios. Saddam não é o primeiro ditador a usar ruínas antigas dessa forma.
Na verdade, a relação entre a idealização de ruínas e governantes totalitários é histórica. Isso porque ruínas nunca são apenas o que parecem: uma coleção de paredes virando areia. Elas são repositórios de memória e mito. Elas ajudam a construir a narrativa fascista da busca pela grandeza do passado perdida para a decadência dos novos tempos.
Intimidação na Babilônia
O Iraque hoje tem um dos patrimônios arqueológicos mais ricos do mundo. A bacia do Tigre-Eufrates que forma a espinha dorsal do país abriga algumas das primeiras cidades do mundo, entre elas Uruk, Ur, Babilônia e Nineveh. Essas ruínas foram há muito tempo saqueadas por forças coloniais, e seus artefatos levados para mobiliar museus estrangeiros. No século 19, as gravuras assírias de Nineveh foram expostas no British Museum, em Londres; e a Porta de Ishtar, da Babilônia, despojada de seus ladrilhos e reconstruída no Museu Pergamon, em Berlim.
Mas depois que assumiu a Presidência do Iraque, Saddam determinou que as preciosas ruínas do país fossem usadas de outra maneira: para construir um culto à supremacia iraquiana, com ele à frente.

Ruínas de Babilônia

A arqueologia teve um papel fundamental nesse plano. Um dos primeiros grupos a se encontrar com Saddam Hussein depois que este assumiu o poder, em 1968, foi justamente o dos arqueólogos iraquianos. "As antiguidades são as relíquias mais preciosas dos iraquianos", teria dito o ditador durante uma reunião. Essas relíquias, continuou, "mostram ao mundo que nosso país é [descendente] de civilizações que, no passado, contribuíram enormemente para a humanidade".
Na década que veio após a tomada de poder no Iraque pelo Partido Baath, de Saddam, o orçamento do Departamento de Antiguidades aumentou em mais de 80%. Os sítios arqueológicos de Nineveh, Hatra, Nimrud, Ur, Aqar Quf, Samarra e Ctesiphon foram submetidos a uma pesada reconstrução. Mas para Saddam, a joia da coroa iraquiana sempre foi Babilônia.
Entre os séculos 18 e 6 a.C., Babilônia foi uma das grandes metrópoles do planeta. Foi a maior cidade do mundo em pelo menos dois momentos históricos, e talvez a primeira a ter mais de 200 mil habitantes. Foi ocupada por Alexandre, o Grande, no século 4 a.C., e prosperou brevemente antes de ser esvaziada devido a guerras posteriores ao seu governo. Após a conquista muçulmana da Arábia no século 7, os viajantes que visitavam a área descreviam apenas ruínas.
 
Babilônia
 
Saddam sempre foi fascinado pelas ruínas da Babilônia. Ele ordenou uma ambiciosa reconstrução dos muros da cidade, o que custou milhões de dólares em pleno auge da Guerra Irã-Iraque. E ergueu os muros a uma altura historicamente improvável de 11,5 metros, provocando críticas da comunidade arqueológica internacional, que o acusou de transformar a Babilônia em "Disneylândia para um déspota". Como gota d'água, Saddam construiu nas ruínas um anacrônico teatro de estilo romano. E, quando os arqueólogos lhe disseram que antigos reis como Nabucodonosor gravavam seus nomes nos tijolos da antiga Babilônia, Saddam insistiu que seu nome também fosse eternizado nos tijolos da reconstrução.
Esses esforços foram depois descritos por Paul Bremer, líder da autoridade provisória da coalizão que assumiu o governo do país interinamente após a queda de Saddam, em 2003, como "uma caricatura(…) monstruosidades artificiais".
 
Pintura de John Warwick Smith
 
Para o teatro do regime totalitário, as ruínas eram um cenário indispensável. A partir de 1981, Babilônia foi palco de celebrações do primeiro aniversário da invasão iraquiana ao Irã, com oficiais usando o slogan: Nebuchadnasar al-ams Saddam Hussein al-yawm, que significa Ontem Nabucodonosor, hoje Saddam Hussein.
Saddam chegou a ordenar que uma representação gigante dele mesmo em compensado fosse colocada sobre o Portão de Ishtar, em Bagdá. E no festival de 1988, um ator representando Nabucodonosor entregou uma faixa ao ministro da Cultura iraquiano, declarando que Saddam Hussein era "neto de Nabucodonosor" e "embaixador dos rios gêmeos (Eufrates e Tigre)."
Peças de museu de Mussolini
Saddam seguiu o modelo de Mussolini. Na Itália, no começo do século 20, o autoproclamado "Líder" (Il Duce) transformou as ruínas de Roma Antiga em um poderoso instrumento de propaganda política. Embora governos anteriores italianos também tivessem feito reivindicações similares, os fascistas de Mussolini levaram essa idealização a outro nível. Mussolini era frequentemente descrito nas propagandas como "um novo Augusto", evocando o imperador romano que reconstruiu grande parte da cidade durante seu reinado.
 
Berlim na Segunda Guerra
 
"Roma é nosso ponto de partida e referência", disse Mussolini a uma multidão durante a celebração do aniversário da cidade em 1922, pouco depois de tomar o poder. "Ela é nosso símbolo ou, se preferirem, nosso mito. Sonhamos com uma Itália romana, que é sábia e forte, disciplinada e imperial. Muito do que foi o espírito imortal de Roma ressurge no Fascismo."
Mas os fascistas se depararam com um problema: desde a Antiguidade, Roma cresceu cobrindo suas ruínas, absorvendo-as no tecido de uma cidade em constante mudança. Pessoas ergueram casas entre capitéis e pilares antigos, construíram suas casas sobre eles com pedras removidas de suas estruturas. Distritos inteiros cresceram cobrindo ruínas e apagando o legado do qual os fascistas dependiam.
 
Desfile nazista
 
Para resolver esse problema, Mussolini ordenou grandes escavações, removendo casas e distritos inteiros e realocando populações que lá viviam. Ele escavou o mausoléu de Augusto, construindo uma praça fascista a seu redor; removeu prédios que se aglomeravam perto do Teatro de Marcellus; e desenterrou o solo da Arena do Coliseu, retirou toda a verdejante vegetação local e trazendo à tona seu hipogeu (monumentos funerários que ficavam no subsolo).
Em maio de 1938, apenas 16 meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, Hitler visitou Roma. Durante a visita, Mussolini mostrou ao ditador alemão uma capital italiana transformada, com ruínas recuperadas e em evidência. Hitler passeou pela cidade à noite, e técnicos de Mussolini destacaram as ruínas recém-escavadas com luzes vermelhas. O passeio cruzou as principais ruínas de Roma, terminando no bem-iluminado Coliseu.
O Führer alemão ficou tão impressionado quanto Mussolini esperava. Hitler também sempre fora fascinado por ruínas. Em seu escritório no Reichstag, Hitler pendurou um retrato do Fórum Romano feito pelo artista francês Hubert Robert, do século 18; o próprio Hitler retratou várias ruínas quando foi pintor. E com frequência, o líder nazista expressava seu ódio à arquitetura moderna e seu amor pela arquitetura clássica da Roma Antiga.
 
"Se Berlim vier a ter o mesmo destino de Roma", elaborou Hitler em 1925, "as gerações seguintes poderiam admirar apenas as lojas de departamentos dos judeus e os hotéis de algumas corporações como as obras mais imponentes do nosso tempo, a expressão característica da cultura de nossos dias".
Para Hitler, as ruínas do passado apontavam para uma versão idealizada da história, o que ele esperava emular em seu Terceiro Reich. "Hitler gostava de dizer que o propósito de suas construções era transmitir seu tempo e seu espírito à posteridade", lembrou o arquiteto-chefe do Terceiro Reich, Albert Speer, em suas memórias.
"Em última análise, tudo o que restou para lembrar os homens dos grandes períodos da história foi sua arquitetura monumental", observou ele. "O que restou dos imperadores do Império Romano? O que lhes daria evidência hoje se não suas construções (...) Assim, as edificações do Império Romano permitiriam que Mussolini se referisse ao espírito heroico de Roma quando quisesse inspirar seu povo com a ideia de um império moderno."
Em resposta a essa ansiedade, Hitler e Speer criaram a teoria do Ruinenwert, ou "valor da ruína". A ideia era criar uma arquitetura que deixasse, mesmo em seu estado decadente, um exemplo inspirador para as futuras gerações. Essa filosofia da arquitetura é visível em grandes projetos arquitetônicos como a arquibancada do campo de Zeppelin (obra de Speer), em Nuremberg, inspirada no antigo Altar de Pérgamo, exposto no mesmo museu (Berlim) onde está a Porta de Ishtar, da Babilônia.
No final das contas, nem as construções da era Hitler, nem os palácios de Saddam conseguiram deixar legados monumentais - ou foram destruídos ou estão largados para a ação do tempo e de grafiteiros.
BBC Brasil

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