Bip! A máquina toca e outro número aparece na tela, um novo turno, mas ninguém parece ter percebido na sala de espera do hospital. Até que um homem atarracado começa a se levantar de sua cadeira, bem devagar. Enquanto se ergue lentamente, como uma velha tartaruga que estica seu pescoço à procura do calor do sol, o médico já abriu seu histórico clínico. Homem, 75 anos. Olha seu relógio e anota o atraso: 15 segundos e nem sinal. Quase meio minuto depois o paciente por fim aparece na porta, apoiado em uma instável bengala. O médico se levanta para recebê-lo, estende a mão e registra mentalmente a frouxidão do aperto. Já tem seu primeiro diagnóstico: sarcopenia, é preciso fazer exercício físico.
Precisará confirmar sua conclusão com testes mais científicos do que o olho clínico, mas a intuição não costuma falhar nesses casos, em que a dificuldade para se movimentar é evidente, o equilíbrio está prejudicado e a falta de força é sentida no primeiro contato. São marcas inequívocas da degeneração da massa muscular que define a sarcopenia, e três problemas que fazem com que a vida dos idosos seja pontilhada por fêmures e quadris quebrados, além de levar sua existência à ameaça iminente da incapacidade. Mas a falta de massa e de força muscular não são características reservadas aos mais velhos. Também estão ligadas a diversas doenças, e aparecem até em pessoas de meia idade aparentemente saudáveis.
De fato, a origem do problema manifestado no inverno da vida começa muito antes de se chegar à velhice, como alerta uma análise da morfologia de mais de 13.000 pessoas realizada nos EUA entre 1999 e 2004, publicada na revista American Journal of Clinical Nutrition em 2014. De acordo com seus dados, obtidos na Pesquisa para o Exame Nacional de Saúde e Nutrição do país americano (Nhanes, na sigla em inglês), o déficit de massa muscular ocorre em todas as idades. E os estudos o relacionam com uma probabilidade maior de morrer por qualquer causa, assim como com doenças metabólicas e cardiovasculares. Essa é uma das razões pelas quais uma equipe de cientistas coloca agora que a massa muscular pode ser considerada um sinal vital, como a glicose no sangue, a pressão sanguínea e o ritmo do coração. A tese foi publicada nos Annals of Medicine em setembro.
A musculatura não serve somente para se movimentar
A figura do ancião que, como uma velha oliveira, se retorce no caminho à consulta do médico, ilustra a função mais conhecida do músculo: deixe que se enfraqueça e a gravidade empurrará o esqueleto ao chão. Mas isso não é o pior: a musculatura não mantém somente a postura, o equilíbrio e o movimento, “também tem funções metabólicas muito significativas”, frisa a endocrinologista e nutricionista do Hospital de La Princesa, em Madri, Begoña Molina. “O músculo é a principal reserva de proteínas do organismo, e é um regulador dos níveis de glicose sanguíneos, porque a consome quando nos movemos”, acrescenta. Ajuda a regular a temperatura corporal — acontece quando trememos —, e se comporta como um órgão endócrino muito interessante: “O faz através da mioquinase, que são mensageiros hormonais que estabelecem comunicação entre o músculo e os diferentes órgãos”, diz Molina. Esse mediador, por exemplo, participa na resposta inflamatória do organismo.
Com todas essas funções e responsabilidades, é compreensível que ter um volume de músculo em valores mínimos tenha graves consequências. Por exemplo, 63% dos pacientes que chegam à UTI têm pouca massa muscular, e a porcentagem é ainda maior nos com mais de 65 anos. Se é preciso entrar na sala de cirurgia, os que têm menos músculo sofrem mais complicações pós-operatórias, e suas estadias no hospital se prolongam. Visto com um enfoque positivo, a estatística indica que os pacientes que entram em traumatologia se recuperam antes se o corpo está bem servido desse tipo de tecido.
Uma nova pesquisa, realizada com a colaboração da empresa farmacêutica Abbott, a partir de 143 artigos publicados entre janeiro de 2016 e o mesmo mês de 2017, afirma que existem várias doenças relacionadas a uma massa muscular excessivamente baixa. Entre elas se destaca a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), que afeta 2,9 milhões de espanhóis. De acordo com o trabalho científico, essas pessoas têm três vezes mais probabilidades de ter obesidade sarcopênica, uma situação em que confluem a falta de músculo e o excesso de gordura. Não são uma exceção: o corpo de 10,3% das mulheres e de 15,2% dos homens nos EUA têm esse padrão, de acordo com dados da pesquisa Nhanes de 1999 a 2004. E também não é um assunto exclusivamente norte-americano e sim um problema insidioso que afeta muitos espanhóis.
Um custo oculto do efeito rebote
Molina afirma que a obesidade sarcopênica [algo como gordos magros: podem caber em tamanhos pequenos, mas onde deveria existir firmeza só se encontra dobrinhas] costuma afetar os que, após inúmeras dietas drásticas, perderam músculo e gordura. Quando o efeito rebote acaba com seu plano de emagrecer, só ganharam o segundo, e as proporções de seus tecidos ficaram cada vez mais descompensadas. “Na consulta sempre se lamentam que não comem muito para ter o excesso de peso que têm, e é verdade, porque comendo muito pouco não conseguem perdê-lo”, diz a endocrinologista. O motivo é que o músculo é o tecido que queima mais calorias, por volta de três quartos de todas as que o corpo consome em repouso. Isso significa que, quando a massa muscular é exígua, por menos que se coma a demanda energética do organismo já é satisfeita, e pode-se até mesmo armazenar gordura extra.
Enfileirar dietas malsucedidas é um erro nutricional comum bem grande, mas não é o único que nos leva a essa situação, da mesma forma que os que têm essa complexa e extrema morfologia não são os únicos que deveriam se preocupar por ter massa muscular baixa. Outro erro comum é dar às proteínas um papel excessivamente protagonista na dieta, com a ideia de que, como os músculos são feitos com essas moléculas, quanto maior o consumo, mais musculosa a pessoa ficará. De fato, o volume da musculatura se mantém graças a elas, por meio de um equilíbrio entre a síntese e a destruição — entre 1% e 3% são trocadas por dia. E sim, a manutenção da massa muscular é feita através de uma ingestão proteica adequada. “Mas não adianta nada ingerir quilos de proteínas se nossa contribuição de energia não estiver coberta”, afirma a endocrinologista.
Ou seja, as proteínas começam a somar somente quando a pessoa comeu nutrientes suficientes de outro tipo para satisfazer sua demanda energética, que depende de sua atividade física diária. Se a intenção é realizar uma dieta correta, “parece que um fator determinante é consumir uma quantidade adequada de proteínas e outra de hidratos de carbono”, diz o dietista-nutricionista da Academia Espanhola de Nutrição e Dietética Ramón de Cangas.
Enquanto a síntese de proteínas musculares dura por volta de 1,5 hora desde a digestão, o efeito do exercício pode chegar a 24 horas. Dessa forma, é conveniente encaixar os exercícios de força com a refeição para esculpir o quanto antes sua desejada musculatura? De Cangas responde que não vale a pena se esforçar, porque não é nada claro o benefício dessa decisão. Mas a seguinte ação é mais garantida: “Certos estudos em humanos indicam que cinco refeições por dia em vez de três podem favorecer a conservação da massa muscular, principalmente quando há fontes de proteínas, e, especialmente, quando vamos envelhecendo”.
As consequências não se fazem esperar. Com uma musculatura desenvolvida é mais simples emagrecer, pois garante que as calorias sejam queimadas com mais facilidade em vez de se acumular. Além disso, nos casos de obesidade sarcopênica, tonificar é a maneira de burlar um altíssimo risco cardiovascular, melhorar a sensibilidade à insulina (portanto, suavizar a diabetes e até mesmo corrigi-la) e evitar os níveis de colesterol prejudiciais sem a utilização de medicamentos.
Calma, não é preciso se matar na academia
O volume da musculatura chega a seu máximo por volta dos 25 anos, quando soma 30% da massa corporal de uma pessoa saudável. Esse pico é maior nos homens do que nas mulheres, já que a testosterona estimula a geração do tecido muscular. Atenção, isso não significa que é preciso se empanturrar desse hormônio para garantir sua saúde: um estudo publicado na revista Frontiers in Physiology, em outubro, concluiu que não são os homens com maiores níveis de testosterona que têm mais músculo, e sim os mais sensíveis a ela, ou seja, os que têm mais receptores. E isso é genético.
Depois, a massa muscular começa a diminuir a partir dos 50 anos. Algumas pessoas chegam aos 80 com somente 15%, ou seja, a metade do que tiveram em sua juventude. E aí começam os problemas. Mas a vida da musculatura muda muito com boa alimentação e a prática de exercícios de força, que não se limitam aos pesos. “Eu fui ginasta, fiz ginástica rítmica, e onde treinava também eram preparados atletas de ginástica artística”, diz Elena Sarabia, professora de Ciências da Atividade Física e Esporte da Universidade CEU Cardenal Spínola, em Sevilha: “Eu os vi começar a treinar e ao longo do ano ficar com a musculatura que todos sabemos que têm. E conseguiram isso com a única ferramenta de seu próprio corpo”.
A especialista desenvolveu uma rotina simples, apta para pessoas acima dos 60 anos (ainda está em tempo) e indivíduos que não gostem, por estética, do corpo especialmente musculoso (algo frequente entre as mulheres). Bastam duas sessões semanais de exercícios de força de 40 minutos, aquecimento e descanso incluídos. E mais, uma terceira sessão não se demonstrou eficaz, provavelmente porque isso tiraria dos músculos o tempo que precisam para se recuperar do esforço. “O treinamento esportivo produz microrupturas das fibras musculares (as que provocam dores musculares), e o corpo as repara com um tecido fabricado para suportar o estímulo que as produziu. Se a pessoa não dá tempo ao organismo para se recuperar de uma sessão de treinamento de força, talvez não consiga assimilar o estímulo enviado na próxima. Por isso, é bom esperar dois dias entre cada treinamento.
E os exercícios não são nada complexos. Os agachamentos são ideais para os quadríceps, e para exercitar as panturrilhas só é preciso ficar nas pontas dos pés e voltar à posição inicial, várias vezes. O glúteo maior merece grande atenção, já que é um músculo grande e localizado em um ponto estratégico para estabilizar o corpo: deitar de barriga pra cima, com as pernas flexionadas, e elevar e baixar o quadril sucessivamente, é esforço suficiente para tonificar essa parte do corpo. Em relação aos abdominais, nem sempre são feitos corretamente. Sarabia alerta que “há tempos os tradicionais são contraindicados porque podem causar problemas nas costas e cervicais”. Agora são feitos no estilo pilates, em que a pessoa se senta e deixa as costas caírem um pouco para trás, e os de tipo prancha, dentre os quais se destacam os que são feitos deitando-se de barriga para baixo, com o antebraço apoiado no solo e suportando o peso. A parte superior do corpo pode ser trabalhada com halteres, faixas elásticas e artefatos semelhantes, assim como flexões, que podem ser feitas nas paredes, com as mãos apoiadas em uma mesa e no solo, quando a pessoa já tem força suficiente.
E como sei quanto músculo tenho?
Não é fácil. De modo que a proposta de que a massa muscular seja usada como sinal vital só pode ser aplicada, com segurança, nos hospitais, onde a medição desse parâmetro é cada vez mais comum. A absorciometria por raios X é a técnica mais precisa, mas é muito cara e ninguém quer se expor a ela rotineiramente, já que expõe a baixas doses de radiação. A tomografia axial computadorizada é o método mais usado pelos médicos para realizar o acompanhamento dos pacientes de câncer, nos quais a falta de músculo foi relacionada a diversos problemas derivados do tratamento (também são utilizados escâneres de ressonância magnética). E no âmbito da pesquisa, começa a abrir caminho a ecografia muscular, que além da quantidade de músculo, mede sua qualidade, um valor relacionado à infiltração de gordura. Quanto mais gordura existir dentro do músculo, menos resistência à insulina e menor capacidade funcional o tecido terá, duas razões de peso para realçar a importância do músculo como referência de saúde. Outra opção passa pelo estudo antropométrico, em que são tiradas medidas do corpo e da gordura subcutânea para calcular a massa muscular.
Mas se há uma técnica que chamou a atenção é a bioimpedância, já que está presente nas balanças comerciais. Uma corrente elétrica passa através do corpo e detecta quanta gordura existe, para depois calcular o volume de músculo (ao entrar em jogo a eletricidade não pode ser usada com a bexiga cheia e em momentos pré-menstruais, em que se retém líquidos, já que prejudicariam as medições). Muitos profissionais usam essa técnica — com modelos de balança muito mais avançados do que os modelos comuns de banheiro. A maioria, entretanto, concorda que, apesar de sua versão doméstica não dar um valor preciso da massa muscular, não é ruim usá-la como uma referência que avisa que estamos perdendo músculo e devemos ir a um profissional. Ou, o que é a mesma coisa, se a saúde está minguando sob a pele sem que ninguém perceba.
El País