sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Genética: A evolução levanta voo

 
A massa de informação só é comparável ao site de transparência do Governo, mas ainda falta entendê-la melhor. Depois de quatro anos de trabalhos coordenados, uma equipe de 200 cientistas de 80 instituições em 20 países sequenciou (ou seja, leu) os genomas de 48 espécies de aves, revelando a quem souber ver os mais íntimos segredos da evolução desses animais. Os resultados foram apresentados em 29 artigos técnicos, oito deles na revista Science, e esclarecem quase todos os enigmas que cercavam as 10.000 espécies que descendem dos dinossauros do Cretáceo e hoje sobrevoam nossas cabeças.
Qual é o ancestral comum dos pássaros, crocodilos e dinossauros? Será a exuberância e diversidade das aves a consequência de um interminável período de tentativa e erro ocorrido antes que a fúria da Terra varresse os grandes répteis? Ou de um Big Bang evolutivo que veio justamente preencher o vazio deixado pela extinção daquelas feras? O que tem em comum a aprendizagem vocal das aves e a dos humanos? E, depois de terem dentes, por que as aves os perderam?
O Consórcio Filogenômico Aviário é dirigido por Guojie Zhang, do Banco Genético Nacional da China, Erich Jarvis, da Universidade Duke (EUA), e Thomas Gilbert, do Museu de História Natural da Dinamarca. Contou com contribuições do Consórcio Brasileiro do Genoma Aviário, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade do Pará e do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A relação completa dos 29 artigos nas publicações Science, Genome Biology, GigaScience e outras revistas científicas pode ser consultada aqui.
Pato, avestruz, emu, corvo, íbis, falcão, águia, pica-pau... As 48 espécies de aves estudadas não foram escolhidas por sua disponibilidade nem por seu valor econômico – nisso o frango é campeão, mas seu genoma já foi sequenciado na década passada –, e sim por representarem todos os grandes ramos evolutivos das 10.000 espécies de aves existentes. Trata-se do “maior estudo genômico de uma só classe de vertebrados até agora”, como destaca Zhang. “Só com uma amostragem dessa escala pode-se começar a explorar a verdadeira diversidade genômica de uma classe inteira de vertebrados”, acrescenta Gilbert.
Houve tentativas anteriores de esclarecer a árvore evolutiva das aves comparando 20 genes entre linhagens diferentes, mas os resultados foram difíceis de interpretar ou eram diretamente contraditórios entre si. “Não é que 20 genes seja pouco”, explica Toni Gabaldón, do Centro de Regulação Genômica, de Barcelona, que participou do estudo. “É que os genes não bastavam para resolver o problema.”
 
Um gene é um segmento de DNA (as letras gattacca…) que contém a informação necessária para fabricar uma proteína (ou seja, que “codifica” uma proteína, no jargão científico). E essas “sequências de código” contam uma história errônea sobre a evolução das aves. A razão é que existem convergências extensivas: duas espécies muito diferentes descobrem as mesmas sequências de código quando têm estilos de vida similares. Parecem parentes, quando são apenas vizinhos com necessidades semelhantes. “Só o genoma não codificante nos fornece o verdadeiro relógio evolutivo”, conclui Gabaldón.
Com a lupa genômica de alta resolução, fica claro agora que as chamadas aves aquáticas não formam um grupo homogêneo, e sim três linhagens que evoluíram independentemente: outro caso de convergência evolutiva. Também se vê agora que o ancestral comum de aves canoras, papagaios, pica-paus, corujas, águias e falcões foi um superpredador, a classe de fera que se situa no topo da sua cadeia alimentar, como são, em seus respectivos ambientes, o leão, o crocodilo do Nilo e o tubarão-tigre. O lindo canto dos pássaros é produto da “natureza, de dentes e garras vermelhas”, como escreveu o poeta Alfred Tennyson.
Toda essa diversificação e a todas as neoaves, que na verdade representam 95% da atual variedade aviária, coincidem temporalmente com as sequelas da extinção em massa que pôs fim ao período Cretáceo, 66 milhões de anos atrás, e que não só acabou com os dinossauros – menos os dinossauros aviários e seus descendentes voadores, que são as aves atuais – como também com a maior parte de todas as espécies animais existentes à época.
Os genomas demonstram que a diversificação evolutiva das aves ocorreu num Big Bang biológico, no máximo 10 milhões de anos depois da extinção. E não durante um longo processo em pleno Cretáceo, como sustentavam outras teorias rivais muito recentes.
Finalmente: há algo comum entre a aprendizagem vocal de aves e humanos? Certamente sim. E não porque compartilhem da mesma origem evolutiva, e sim porque – de novo – os cérebros das diferentes espécies encontraram soluções parecidas para problemas similares. Codificar o mundo como uma sequência de sons, processá-los e produzi-los em imitação ao pássaro que está à frente do indivíduo parece ser uma questão muito concreta, que admite apenas um tipo de solução, ao menos neste vale de lágrimas. Qualquer dia veremos um crocodilo cantor – mas é melhor não confiar muito no que ele disser.
EL PAÍS.com

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