Enquanto isso, o fenômeno só tem piorado – os apicultores denunciam perdas mais graves ano após ano – e a única boa notícia nesse terreno só surgiu muito recentemente. Com característica lentidão, mas louvável preocupação, as Administrações, incluindo as da União Europeia (que no ano passado proibiu vários pesticidas) e dos EUA (que aprovou um orçamento extraordinário para investigar o fenômeno) tomaram consciência do problema e puseram mãos à obra.
A gravidade da situação e a demora e ineficácia das medidas paliativas provocam uma pergunta que já não pode ser considerada absurda: como seria um mundo sem abelhas? “Se tivéssemos de depender de uma agricultura sem polinizadores, estaríamos preparados”, afirma o subdiretor-geral de Saúde e Higiene Animal do Ministério de Agricultura da Espanha,Lucio Carbajo. Nem todos os cultivos desapareceriam, porque há aqueles que se podem administrar de outras formas (como autopolinização e polinização por pássaros), mas todas as fontes coincidem que a perda de diversidade e de qualidade alimentar seria enorme. Além disso, os mesmos fatores que atacam as colmeias afetam também os polinizadores silvestres, como o zangão, o besouro e as vespas, de modo que as perdas afetariam não só a produção agrícola, mas também – e possivelmente de forma ainda mais crucial – os ecossistemas naturais e o meio ambiente em geral. As abelhas, as flores e os frutos evoluíram juntos há dezenas de milhões de anos, e não se pode destruir um sem destroçar os outros.
O Laboratório de Referência da UE para a Saúde das Abelhas, com sede em Anses, na França, publicou em abril os resultados do primeiro programa de vigilância do despovoamento das colmeias em 17 países europeus. Os dados, baseados no estudo de mais de 30.000 colmeias durante 2012 e 2013 e das práticas agrícolas e agentes patogênicos mais daninhos, mostram índices de mortalidade invernal muito variáveis entre países (entre 3,5% e 33,6%). Em geral, a situação é menos grave na Espanha e em outros países mediterrâneos (menos de 10%) do que no norte do continente (mais de 20%). As cifras contradizem as do setorapícola espanhol, que denuncia taxas de mortalidade entre 20% e 40%, em mais um exemplo de como é difícil padronizar os critérios e as metodologias nessa área.
O peso dos possíveis fatores de risco, como o manejo das colônias, o uso de pesticidas e os agentes patogênicos, é variável e complexo. Tanto o relatório europeu como as demais fontes coincidem em que as causas da mortalidade das abelhas são múltiplas. Também assinalam, entretanto, que certos fatores podem ser mais fáceis de abordar que outros. Os pesticidas mais daninhos, por exemplo, podem ser proibidos ou restringidos, como a UE já fez com quatro deles. Por outro lado, e como é natural, os principais produtores de pesticidas – Bayer, Syngenta e Basf – não aceitam que haja evidências sólidas de que seus produtos sejam a causa do problema. E, de forma mais significativa, algumas fontes científicas coincidem com eles.
“Os pesticidas neonicotinoides, como os proibidos pela UE, não são os mais detectados nas colmeias, pelo menos não de forma crônica”, assegura Mariano Higes, do Centro Regional Apícola de Marchamalo, em Guadalajara. “Podem ser um problema em monoculturas muito grandes, mas afetam principalmente os polinizadores silvestres, como os besouros, não as colmeias de abelhas.” Higes aceita, entretanto, que restringir esses produtos pode ser útil para os ecossistemas, embora não para a agricultura.
E o cúmulo, segundo uma pesquisa dirigida por Tom Breeze, do Centro de Investigação Agroambiental da Universidade de Reading, publicadaeste ano na PLoS ONE, é que são as próprias políticas agrícolas europeias que estão agravando o problema: ao promover as grandes monoculturas, elas estão produzindo um crescente desajuste entre as necessidades de polinização e a disponibilidade de colmeias em todas as regiões do continente. Todos esses cultivos precisam de abelhas, mas os apicultores não conseguem reproduzir tanto as colmeias, e por isso o cultivo acaba rendendo menos. O resultado dessa investigação chama ainda mais a atenção pelo fato de que o trabalho foi financiado pela mesma UE que é objeto de suas críticas.
“As políticas agrícolas e de biocombustíveis europeias estimularam um grande crescimento das áreas cultivadas que precisam de polinização por insetos”, explicam Breeze e seus colegas, que estenderam seu estudo a todo o continente. Entre 2005 e 2010, por exemplo, o número requerido de abelhas melíferas cresceu cinco vezes mais rápido que a existência desses insetos. Em consequência, mais de 90% da demanda não pôde ser satisfeita em 22 países da UE. “Nossos dados alertam sobre a capacidade de muitos países para suportar perdas importantes de insetos polinizadores silvestres”, conclui Breeze.
Esses polinizadores silvestres – principalmente as 250 espécies de besouros existentes – são a outra metade da história. Seria possível pensar que, em um mundo sem abelhas, a tarefa de polinizar os cultivos pudesse ser assumida por esses outros insetos, que, de fato, são hoje os que polinizam a maior parte dos cultivos básicos para a alimentação mundial: a ação dos besouros (do gênero Bombus) produz o dobro de frutos que a devida à apicultura convencional com abelhas (do gêneroApis).
No entanto, uma recente investigação do Matthias Fürst e seus colegas da Royal Holloway University de Londres, publicado na Nature, desinflou essa expectativa ao mostrar que dois dos grandes agentes patogênicos das colmeias, o vírus das asas disformes (DWV) e o fungo Nosema ceranae, já se estenderam para os polinizadores naturais. Esses agentes infecciosos não só se mostraram capazes de transmitir-se do gênero Apis para oBombus em experimentos controlados de laboratório, como já contagiaram besouros na natureza, segundo os estudos de campo desses cientistas na Grã-Bretanha e na Ilha de Man. Cabe temer, portanto, que os polinizadores silvestres logo estejam tão ameaçados como suas colegas domésticas.
A identificação do Nosema como uma das grandes causas do Despovoamento das colmeias se deve a Higes, o principal investigador espanhol nessa área. “O papel dos agentes patogênicos e, sobretudo, doNosema ceranae segue sem ser compreendido”, reconhece Higes, cujo laboratório leva dez anos investigando esse microsporídio. “Muitos de meus colegas projetam experiências errôneas e extraem conclusões que não são inteiramente corretas; é uma pena, mas dez anos depois continua existindo uma nebulosa no conhecimento.” Como se vê, a investigação sobre a morte das abelhas está recheada de conflitos.
Essa é uma das razões pelas quais grupos ecologistas como o Greenpeace não só elogiam as restrições europeias a quatro pesticidas neonicotinoides, como também proponham estender a proibição a outros 319 compostos que consideram daninhos. “Não há dúvida de que a mortalidade nas colmeias tem múltiplas causas”, diz Luis Ferreirim, do Greenpeace. “Mas, se eu tivesse de estabelecer uma hierarquia, o primeiro fator seriam os inseticidas, que são feitos precisamente para matar insetos, como as abelhas.” O ecologista lembra ainda que os herbicidas também são daninhos, pois acabam com as flores que fornecem o principal alimento para as abelhas. “Além disso, contra os pesticidas se pode atuar com mais eficácia e rapidez, enquanto atacar vírus, bactérias, fungos e outros parasitas é muito difícil”, assinala Ferreirim. “E não podemos esquecer que os parasitas estão mais restritos às abelhas, enquanto os pesticidas afetam também os besouros e outros polinizadores naturais que também é preciso proteger.”
Um mundo sem abelhas seria também um mundo sem besouros, e talvez sem flores, pois as abelhas e as flores evoluíram juntas e são as duas caras da mesma moeda de um ponto de vista ecossistêmico. Um mundo triste e monótono como uma cidade fantasma, um pesadelo estéril a apenas um passo do nada. A ciência está mobilizada. A inteligência política deve seguir em sua esteira.
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