quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Pesquisadores recuperam o conteúdo de pergaminho do século I calcinado

 

A imagem da esquerda não é um pedaço de carvão, mas um pergaminho do século I escrito em grego, com um texto, possivelmente, do filósofo epicurista Filodemo de Gádara. Esses são alguns dos segredos decifrados por um grupo de pesquisadores. Usando uma avançada técnica de imagem por raios X, puderam localizar letras e palavras escritas sobre um papiro completamente carbonizado.
No dia 24 de agosto do século I da era cristã, uma tremenda erupção do Vesúvio enterrou, sob toneladas de rochas vulcânicas e cinzas, várias cidades romanas como Pompéia e Herculano. A tragédia, entretanto, serviu para conservar algumas das maravilhas do Império Romano, como os afrescos dos palácios de Pompéia. No século XVIII, foi também descoberta a Villa dei Papiri, como foi denominada.
Na encosta do vulcão, em um povoado que havia pertencido ao sogro de Júlio César, quase 1.800 rolos de papiro foram encontrados debaixo de metros de cinzas solidificada. Somente alguns puderam ser desenrolados. A grande maioria dos papiros esperou, carbonizada, que a tecnologia permitisse lê-los sem destruí-los.
É o que, pelo menos em parte, um grupo de pesquisadores italianos e franceses conseguiu. A tarefa não era simples. O papiro, o material vegetal de que os pergaminhos são feitos, teve se suportar o castigo de uma onda de fogo de 320º, ficando enegrecido e compactado. Para complicar, os escribas usavam carvão vegetal para transcrever os textos. Assim, era negro sobre negro.
“A tinta à base de carvão não penetra nas fibras do papiro, mas fica agarrada sobre elas”, explicam os pesquisadores em seu trabalho, publicado pela revista Nature Communications. Esse detalhe foi fundamental para o sucesso de sua pesquisa. O texto escrito em um pergaminho fica em relevo. Somente poucos micrômetros (a milionésima parte de um metro), mas suficientes para, com a tecnologia apropriada, diferenciar entre o carvão da escrita e o carvão do papiro chamuscado.
Os pesquisadores do Istituto per la Microelettronica e Microsistemi del Consiglio Nazionale Delle Ricerche (CNR) contaram com a colaboração de colegas do Laboratório Europeu de Radiação Sincrotron, localizado em Grenoble (França), para analisar o pergaminho denominado PHerc.Paris.4, um dos dois rolos que Napoleão recebeu como presente do Reino de Nápoles em 1802.
Nas instalações do sincrotron, os cientistas puderam escanear o pergaminho usando uma versão da tomografia computadorizada de raios X (XCT). Muito usada na medicina, essa técnica de imagem se aproveita do fato dos materiais mostrarem índices diferentes de absorção dos raios X. Mas, ainda que seu contraste sirva para diferenciar entre material duro (ossos) e mole (tecidos), não basta para diferenciar um carvão de outro.
“A tinta do carvão e o papiro carbonizado têm uma composição muito semelhante e não podem ser diferenciados usando a XCT”, explica o pesquisador do CNR e principal autor da pesquisa, Vito Mocella. Usaram outra técnica (XPCT, na sigla em inglês) que aproveita as variações na capacidade refrativa (ou seja, a mudança de fase dos raios X) entre as estruturas de um material composto que absorvem de forma quase igual. Conseguiram assim realizar um aumento suficiente do contraste da imagem para ler o pergaminho sem desenrolá-lo.
Com essas imagens de raios X, os pesquisadores puderam localizar letras e até palavras em diferentes pontos do pergaminho. Escrito em grego, a língua culta e da filosofia da época, algumas das letras são evidentes, principalmente para especialistas. Outras, entretanto, podem confundir seu traço com as linhas das fibras do papiro.
“Depois de vários ensaios, selecionamos as amostras mais legíveis das imagens escaneadas”, disse em nota o pesquisador do CNRS francês e coautor do trabalho, Daniel Delattre. “Não tínhamos mais dúvidas, as curvas escuras não podiam ser confundidas com a rede de fibras do papiro. Podemos ver letras, deformadas e retorcidas letras gregas!”, acrescenta, exultante.
Mesmo que as sílabas recuperadas do interior do pergaminho ainda não permitam ler seu conteúdo, deram várias pistas sobre ele. Os cientistas aproveitaram a leitura com a mesma técnica de imagem dos fragmentos do papiro PHerc.Paris.1, um dos quais se tentou desenrolar nos anos 80 do século passado e acabou destruído, para fazer comparações entre ambos.
Dessa forma, puderam determinar com certo grau de certeza que foram escritos pelo mesmo escriba. O estilo das letras de um e de outro é idêntico. Sobre o conteúdo, ainda que a aposta seja arriscada, acreditam ser um texto filosófico. Seu autor poderia ser Filodemo De Gádara, um seguidor dos ensinamentos de Epicuro. Mesmo que ainda seja possível melhorar, os pesquisadores acreditam que foi aberta a porta da maior biblioteca da antiguidade que, mesmo carbonizada, chegou até os dias de hoje.
ELPAÍS.com

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