sábado, 10 de setembro de 2016

A árvore genética de toda a cerveja que bebemos tem quatro séculos

 
“Antes da descoberta da cerveja, as pessoas costumavam vagar de um lugar para outro seguindo as cabras. Depois perceberam que o grão podia ser cultivado e transformado em pão, e que podia ser esmagado e transformado num líquido que produzia uma sensação agradável, quente e acolhedora. Os dias de seguir as cabras acabaram. Os seres humanos se assentaram para esperar que o grão crescesse e a cerveja fermentasse. Trocaram suas barracas por aldeias, estas se tornaram vilas, depois cidades” e assim até hoje. O cientista Charles Bamforth, veterano especialista em processos de fermentação da Universidade da Califórnia, Davis (EUA), resume dessa maneira a origem das sociedades atuais. “A cerveja é o pilar da civilização contemporânea”, enfatizou em uma de suas conferências reunidas pela revista Scientific American.
O que está claro é que o mundo de hoje seria impensável sem a domesticação das leveduras, fungos microscópicos que transformam o açúcar em álcool e em outros produtos. Apesar de sua importância, esse processo de seleção artificial foi muito menos estudado do que o dos animais domésticos ou o das plantas.
Agora, quase vinte pesquisadores de Bélgica, Alemanha e EUA sequenciaram o genoma de 157 leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae, usadas para fazer cerveja, vinho, licores, saquê, pão e bioetanol, representativas de todas as variantes comerciais atuais.
Os resultados revelaram que a imensa maioria descende de um pequeno número de ancestrais selecionados pelos seres humanos. Sua árvore genética, descrita no estudo, tem cinco grandes ramos: leveduras asiáticas, que incluem aquelas que produzem o famoso fermentado de arroz japonês; as que fazem vinho; as que fazem pão e duas famílias diferentes de cervejas. De todas elas, a mais domesticada é a da cerveja.
O trabalho detecta uma clara diferença genética entre as leveduras com as quais se produz cerveja na Europa continental, as do Reino Unido e um terceiro grupo que engloba as dos EUA, cuja origem está em leveduras que vieram da Inglaterra.
O ancestral de todas elas remonta a uma data entre 1573 e 1604. Exatamente nessa época, destaca o estudo, publicado na revista Cell, uma transição-chave aconteceu. Se até então a cerveja era feita em casa e cada família tinha a sua, nessa época surgiram os primeiros lugares de produção em grande escala: os pubs e os mosteiros. Os primeiros casos de produção da bebida são muito mais antigos, há não menos de 3.000 anos, mas, de acordo com o trabalho, as cervejas atuais são feitas com leveduras que descendem desses ancestrais selecionados no fim do século XVI.
“Os cervejeiros daquela época foram suficientemente inteligentes para reciclar o sedimento remanescente depois de cada fermentação e adicioná-lo à seguinte, fazendo com que o processo fosse cada vez mais consistente e rápido”, diz Kevin Verstrepen, pesquisador da Universidade Católica de Louvain e do Instituto de Biotecnologia de Flandres e principal autor do estudo. A cerveja era produzida durante o ano todo, levava apenas uma semana para fermentar e, como os micróbios se multiplicam muito mais rapidamente do que cães e vacas, isso permitiu um processo de domesticação em tempo recorde.
“A levedura de cerveja é um dos organismos mais domesticados do planeta”, observa Verstrepen. “Quase não sobreviveriam num ambiente natural e estão totalmente adaptadas para viver nas cervejarias, são um pouco como os cães”, explica. Por outro lado, as leveduras do vinho “são mais parecidas com os gatos, porque mantiveram muito mais genes selvagens, em parte porque o vinho é produzido apenas uma vez por ano, não como a cerveja”.
A levedura de cerveja foi domesticada por pura intuição, muito antes que a humanidade descobrisse a existência dos micróbios. “Na Idade Média, provavelmente, a levedura de pão era muito semelhante à da cerveja e existem referências de que padeiros e cervejeiros as trocavam, sem saber, é claro, o que eram exatamente”, diz Verstrepen. “Parece que as variantes atuais são de panificação são híbridos obtidos de leveduras de cerveja”, destaca.
O estudo genético mostra também que essas variantes são usadas para fazer cervejas muito diferentes, como as de fermentação alta (ales) e as cervejas pretas, embora existam alguns tipos de cerveja que exigem levedura especial, como a espessa cerveja branca da Alemanha (hefeweizen). Mais tarde, em 1883, Emil Hansen, um micologista da cervejaria dinamarquesa Carlsberg, obteve as primeiras culturas de levedura de cerveja puras que permitiram a industrialização da bebida.
Depois de mais de 400 anos evoluindo ao lado dos humanos, as leveduras domésticas se tornaram estéreis. Uma variante selvagem recorre à reprodução sexual quando o alimento escasseia. Como as domésticas estão sempre bem alimentadas, elas perderam completamente essa capacidade.
Elas também têm genes especiais para metabolizar os açúcares característicos da cevada e perderam a capacidade de produzir compostos químicos que dão um sabor ruim. “Do mesmo modo, as leveduras do vinho têm uma resistência genética ao cobre, que é utilizado para combater infecções fúngicas nas vinhas”, conclui Verstrepen.
El País.com

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