quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A gota d´água

 (Foto: Otávio Silveira/Editora Globo)
Uma das primeiras guerras da história aconteceu há mais de 4,5 mil anos na Suméria, região onde hoje se encontra o Iraque. Munidos de espadas, machados de bronze e lanças, o exército da cidade-estado de Lagash avançou contra o rei de Umma, que desviou as águas do Rio Tigre para construir um canal de irrigação. “Eannatum, líder de Lagash, foi para a batalha e deixou 60 soldados mortos na margem do canal”, dizia uma inscrição encontrada por arqueólogos. Assim como outras civilizações que não tinham acesso a recursos hídricos abundantes, a luta pela água era, literalmente, uma batalha de sobrevivência para os dois povos.
Passados alguns milênios, os conflitos já não são resolvidos apenas pela força. Mas a explosão populacional e a crescente demanda por infraestrutura e produção de bens ampliaram ainda mais a necessidade por recursos naturais. A água doce, antes considerada abundante em boa parte do mundo, se transformou num bem estratégico. Apesar de ocupar dois terços da superfície terrestre, a água própria para consumo faz parte de uma fatia mínima. De 1,2 bilhão de quilômetros cúbicos de água existentes no planeta, menos de 3% é potável — o que representa cerca de 35 milhões de quilômetros cúbicos. O problema é que 2% deste volume está disponível na forma de geleiras e camadas de neve e 0,9% está localizado em aquíferos subterrâneos. Ou seja, 0,1% de água doce é encontrada em locais de fácil acesso, como rios e lagos — o equivalente a 1,4 milhão de quilômetros cúbicos.
Como se não bastasse, essa pequenina porção é degradada a cada dia pela poluição de rios e depósitos subterrâneos gerados pelo despejo de esgoto não tratado e resíduos industriais. Um relatório divulgado em 2013 pelo Ministério de Recursos Hídricos da China indicava que 97% dos lençóis freáticos de 118 cidades do país estavam poluídos. Com esse cenário, o discurso de que a água poderá se transformar no petróleo do século 21 não é simples conversa daquele tio alarmista. Como as fronteiras políticas não coincidem com os limites geográficos das 261 bacias hidrográficas existentes no mundo, litígios pelo controle da água tendem a aumentar. “A disputa pela água não gera necessariamente uma guerra. Mas em regiões com um histórico beligerante, a redução e degradação dos recursos podem virar um estopim para um conflito”, diz Vanessa Barbosa, autora do livro A Última Gota, da Editora Planeta, que chega às livrarias em outubro.
Apesar de contar com quase 12% da água superficial do planeta, o Brasil não escapa desse cenário de tensão. São Paulo e Rio de Janeiro, os dois estados mais ricos do país, entraram recentemente numa crise política por causa do controle da vazão do Rio Paraíba do Sul, que nasce em território paulista, mas é essencial para abastecer a região metropolitana carioca. Antes de tomar aquele banho demorado ou lavar a calçada de casa, saiba como a água está sendo disputada gota a gota em diferentes lugares do mundo.
 
SP vs RJ > NÃO É SÓ VOLUME MORTO
Crise hídrica em São Paulo também tem reflexo na distribuição interestadual de água
Durante a virada de 2013 para 2014, São Paulo enfrentou o verão mais quente e seco das últimas décadas. Com a diminuição contínua dos níveis de água do Sistema Cantareira, composto por seis represas que atendem mais de 9 milhões de habitantes da região metropolitana da capital paulista, o governo passou a utilizar uma reserva de emergência, chamada popularmente de volume morto, para continuar normalmente o abastecimento. Além disso, deu início às obras de transposição das águas da represa de Jaguari, que faz parte da bacia do Rio Paraíba do Sul, para o reservatório de Atibainha, integrante do Cantareira.
“A transposição era uma alternativa prevista apenas para 2025”, afirma Edilson de Paula Andrade, geólogo especialista em recursos hídricos. O problema é que o Paraíba do Sul, com nascente em São Paulo, corre para o Rio de Janeiro e tem parte de sua água transposta para outro rio, o Guandu, responsável por abastecer 80% da região metropolitana da capital fluminense.
 
Clique na imagem para ampliá-la (Foto: Bruno Algarve)
 
NA CONTA DA NATUREZA
Além de afetar o consumo humano, a crise hídrica em São Paulo também ameaça a biodiversidade dos reservatórios
Pela primeira vez, o índice de água das represas do Sistema Cantareira atingiu em 2014 um volume menor do que 10%, obrigando o governo estadual a utilizar um reservatório de 400 milhões de metros cúbicos de água, uma reserva técnica conhecida como "volume morto". Ao contrário do que o nome indica, essa porção hídrica é muito importante para a manutenção da biodiversidade. "De morta essa reserva não tem nada. Há toda uma cadeia de vida que será alterada por conta da interferência humana", afirma o ambientalista Dener Giovanini, vencedor em 2003 do prêmio ambiental Unep-Sasakawa, promovido pela ONU. Para o especialista, a seca também é motivada pela eliminação da cobertura vegetal nativa, o que afeta a proteção dos cursos de água responsáveis por abastecer os córregos. "Por mais que o cidadão faça sua parte e economize água, o atual estilo de desenvolvimento predatório continuará a promover desequilíbrios", diz Giovanini.
 
ISRAEL vs VIZINHOS > GUERRA TÁTICA
Cercado de inimigos, Israel tomou o controle dos principais recursos hídricos da região
Após sua criação, em 1948, o Estado de Israel se encontrava em posição geopolítica difícil: além de ser rodeado de vizinhos árabes que não concordavam com a partilha do território palestino, o país era dependente das águas do Mar da Galileia, lago abastecido majoritariamente pelo Rio Jordão, cujas principais nascentes se encontravam em território sírio, nas Colinas de Golan.
Para garantir o abastecimento, Israel e Síria firmaram um acordo de paz assinado em 1949 que determinava a partilha do Mar da Galileia. Em 1953, no entanto, os israelenses iniciaram a construção de um aqueduto que levaria as águas do lago para outras regiões do país.
Alegando que o pacto havia sido desrespeitado, a Liga Árabe (organização composta por mais de 20 países) aprovou um plano para a construção de canais que desviariam as águas de parte das nascentes do Rio Jordão. Ameaçado pelo projeto, Israel iniciou uma série de ataques fronteiriços contra Síria e Jordânia, o que forçou a interrupção das obras. 
As crescentes tensões entre os países chegaram ao ápice em 5 de junho de 1967, quando Israel lançou uma ofensiva militar contra Egito, Jordânia e Síria. De uma só vez, os israelenses tomaram o controle das Colinas de Golan, da Península do Sinai, de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia.
Além do controle estratégico das nascentes que davam o domínio exclusivo do Mar da Galileia, Israel também conquistou um complexo de aquíferos subterrâneos localizados na Cisjordânia. “Os palestinos que vivem nessa região não podem utilizar os poços sem a autorização do exército israelense”, afirma o geógrafo Gilberto Souza Rodrigues Junior, que defendeu sua tese de doutorado sobre os recursos hídricos israelenses.
Clique na imagem para ampliá-la (Foto: Bruno Algarve)

BOLÍVIA > REBELIÃO POPULAR
Na cidade boliviana de Cochabamba, a privatização dos serviços hídricos motivou uma revolta contra o governo
Após ser eleito em 1997, o presidente boliviano Hugo Banzer passou o controle da empresa estatal de recursos hídricos da cidade de Cochabamba para as mãos do grupo privado Aguas Del Tunari. As tarifas de água foram reajustadas em 100%, apesar do abastecimento não atingir os bairros mais pobres da cidade. Durante os primeiros meses de 2000, setores populares se uniram contra a privatização, em protestos que foram reprimidos violentamente pela polícia. No dia 9 de abril daquele ano, a Aguas Del Tunari se retirou de Cochabamba e colocou fim ao episódio que ficou conhecido como Guerra da Água. Passados alguns anos, a situação não melhorou. “A população pobre não tem acesso à rede pública e fica à mercê da perfuração de poços, com um mercado clandestino da água”, afirma Matheus Pfrimer, professor de relações internacionais da Universidade de Goiás.
 (Foto: Bruno Algarve)
EGITO vs ETIÓPIA > DÁDIVA EM RISCO
  Quem gostava das aulas de história do colégio deve se lembrar da frase de que a civilização milenar egípcia só floresceu graças à presença do Nilo, o maior rio do mundo com 6,6 mil quilômetros de extensão. Ainda hoje, o Egito depende exclusivamente de sua bacia hidrográfica e 98% dos 80 milhões de habitantes do país vivem próximo de suas margens. Em 2011, o anúncio de que a Etiópia se preparava para construir uma usina hidrelétrica orçada em US$ 4,2 bilhões e capaz de produzir 6 mil megawatts de energia por hora acendeu o alerta vermelho no país árabe.
 (Foto: Bruno Algarve)
 
CHINA vs ÍNDIA > UM RIO ENTRE GIGANTES
  O Rio Brahmaputra, que percorre as duas nações mais populosas do mundo, sofre com a construção de barragens em seu leito
Somadas, as populações de China e Índia representam quase 35% da população mundial, o que equivale a mais de 2,5 bilhões de habitantes. Com o desafio de abastecer e providenciar energia para tantas pessoas, o governo chinês conta com um trunfo geográfico: após a revolução socialista de 1949, o exército do país ocupou a região do Tibete, nascente de algumas das principais bacias hidrográficas da Ásia.
Entre os rios que se originam na região está o Brahmaputra, que tem extensão de 2,9 mil quilômetros e percorre estados indianos importantes, como Assam, antes de se encontrar com o Rio Ganges e desaguar no Golfo de Bengala, em Bangladesh. Em território chinês, onde nasce, ele é chamado de Yarlung Tsangpo e passa pelo maior desfiladeiro do mundo, que tem o mesmo nome do rio e até 5 mil metros de profundidade.
Por conta de seu potencial energético, a China determinou a construção de quatro usinas hidrelétricas ao longo do rio e, futuramente, o desfiladeiro de Yarlung Tsangpo poderá abrigar duas construções capazes de gerar mais energia do que a usina chinesa de Três Gargantas, que tem potência instalada de 22,4 mil megawatts e é considerada a maior hidrelétrica do mundo.
“A construção dessas usinas é uma ameaça à Índia”, afirma Mirza Zulfiqur Rahman, pesquisador de estudos internacionais da universidade indiana Jawaharlal Nehru. “O Brahmaputra tem uma importância vital ao país, sustentando 4% da população que mora próximo de sua bacia hidrográfica.”
Apesar de ouvir do governo chinês que as quatro usinas hidrelétricas não represarão a água do Brahmaputra, a Índia iniciou a construção de barragens na província de Arunachal Pradesh, que faz divisa com a China. “O Rio Brahmaputra envolve também Bangladesh  e essas nação será duramente afetada”, diz Rahman.
 
 (Foto: Bruno Algarve)
EUA vs MÉXICO > DISPUTA DESIGUAL
México e Estados Unidos divergem sobre a divisão de águas do rio que separa suas fronteiras
Se a falta de chuvas no estado de São Paulo durante um verão já causou uma crise hídrica de grandes proporções, imagine a situação do oeste dos Estados Unidos, que registra em sequência os 14 anos mais secos desde o início do século 20. Localizada em uma região com pouca disponibilidade hídrica, a fronteira entre México e Estados Unidos depende das águas do Rio Grande, que nasce no estado americano do Colorado e cruza o país latino-americano sob o nome de Rio Bravo, até desaguar no Golfo do México.
Com mais de 3 mil quilômetros, suas águas são disputadas entre os dois países e também são alvo de conflitos internos nos estados americanos. Em março deste ano, o Texas processou o Novo México e o Colorado, alegando que eles estavam utilizando mais água do que o determinado em acordos estabelecidos. “A distribuição entre os países não é justa, mas, por ser o vizinho do país mais poderoso do mundo, o México sofre uma assimetria grande entre as relações”, diz José Luiz Escobedo Sagaz, pesquisador da Universidade Autônoma de Coahuila.
 (Foto: Bruno Algarve)

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