Desde que Cristóvão Colombo chegou a uma praia do Caribe em 12 de outubro de 1492, um mistério persiste: de onde veio o povo que o recebeu, os tainos – e todos os outros indígenas das Américas? Descobertas envolvendo índios brasileiros e fósseis achados no país trouxeram novos dados sobre a questão. Pesquisas com DNA de tribos primitivas de todo o mundo revelaram parentesco genético entre índios brasileiros e aborígines da Oceania. Outro trabalho datou dois dentes fósseis de cervos, encontrados no Piauí, em mais de 24 mil anos. A presença de vestígios humanos na mesma camada geológica sugere que a região já era habitada naquela época.
O primeiro trabalho, publicado em 2015 na revista Nature, analisou 600 mil marcadores genéticos de 48 indivíduos de nove tribos brasileiras. Esses dados foram comparados ao DNA completo de 24 outros indivíduos – dois suruís, da Amazônia, três mixes, da América Central, três iorubás, da África, e 16 papuas, da Nova Guiné.
Segundo Francisco Mauro Salzano, do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que participou do estudo, os resultados mostraram a existência de uma região genética ancestral (que a equipe denomina Ypykuéra – “ancestral”, em tupi), presente apenas nos suruís, karitianas e xavantes, do Brasil, em uma taxa média de 1% a 2%, semelhante à encontrada em populações da Oceania. Ou seja, até 2% do DNA dos índios brasileiros provém dos aborígines da Austrália e vizinhanças.
“Essa assinatura genética não está presente em índios das Américas Central e do Norte, nem em um indivíduo pré-histórico (que deve ter vivido há 12.600 anos) cujos restos foram encontrados em Montana, nos Estados Unidos”, diz. Para Salzano, a descoberta expõe a possibilidade de migrações pré-históricas diferentes dos índios da América do Sul, por um lado, e dos da Central e do Norte, por outro. “O que detectamos é um resquício de uma população ancestral”, explica.
“Não estamos sugerindo uma migração independente de nativos da Oceania.” De qualquer forma, para Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), que também participou da pesquisa, a descoberta muda o panorama do povoamento das Américas, apontando a existência de uma nova população fundadora. “Além disso, diferencia em termos genéticos as tribos amazônicas, as únicas nas quais é possível ver ainda hoje as marcas da mistura entre os diferentes povos que chegaram ao continente”, diz.
Ancestrais comuns
Segundo Maria Luiza Petzl-Erler, do Departmento de Genética da Universidade Federal do Paraná (UFPR), outra participante do trabalho, a grande novidade trazida pelo estudo é que a origem dos indígenas das Américas é mais complexa do que se imaginava. “O vínculo com populações da Oceania não era conhecido ainda”, explica. “O que ocorre é que tribos da Amazônia e do Planalto Central do Brasil compartilham parte de sua ancestralidade com povos atuais daquele continente.
Ainda não sabemos em qual região da Ásia habitavam esses ancestrais compartilhados entre os ameríndios e os nativos da Oceania. Os resultados do trabalho indicam que a população Ypykuéra e os antepassados siberianos se misturaram há muito tempo, talvez ainda na Ásia ou logo no início da presença humana nas Américas.”
A datação dos dentes de cervo foi coordenada pelo físico Oswaldo Baffa, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP) da USP de Ribeirão Preto. O material fora encontrado pela arqueóloga Niéde Guidon no sítio Toca do Serrote das Moendas, nos arredores do Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, sul do Piauí.
Os fósseis foram datados em dois laboratórios distintos. Um dente foi analisado no Departamento de Física da FFCLRP; o outro, no Departamento de Química do Williams College, de Massachusetts (EUA). “Os resultados encontrados foram de 29 mil anos no primeiro caso e de 24 mil anos no segundo”, diz Angela Kinoshita, da equipe de Baffa e professora da Universidade Sagrado Coração. “Realizamos também a datação da camada de calcita que recobria esses materiais. A idade apontada foi de 21 mil anos. Os resultados são consistentes, pois os dentes que estavam abaixo da camada de calcita são mais antigos que ela, como seria o esperado.”
Segundo Baffa, como os dentes do cervo e os ossos humanos estavam na mesma camada, pode-se inferir que pessoas já estavam presentes naquele local na mesma época. “As evidências apontam para possivelmente várias entradas do homem no continente americano e por diferentes rotas”, explica. “Pela costa do Pacífico, vindo do hemisfério norte. Também não deve ser descartada a chegada por barco, através do mesmo oceano, diretamente na América do Sul. Isso parece impossível hoje, mas há 20 mil anos o nível do mar estava mais baixo e uma viagem por barco, parando em ilhas que agora não se veem mais, não pode ser totalmente descartada.”
Teoria resistente
A chegada dos primeiros humanos às Américas sempre foi um tema controverso, e as novas descobertas não resolvem o enigma. Várias teorias tentam desvendar esse mistério. A mais velha e renitente delas é o modelo Clovis-first (“Clovis-primeiro” em inglês). Deve seu nome ao sítio de Clovis, descoberto em 1939 no Novo México (EUA), onde foram achados artefatos de pedra lascada datados de 11.400 anos atrás.
Segundo o modelo, esses pioneiros, que vieram apenas pelo estreito de Bering, seriam todos membros da raça mongol, que hoje domina a Ásia. A chegada teria ocorrido há cerca de 12 mil anos e nenhum ser humano teria posto os pés no continente antes dessa data. Defendido majoritariamente pela comunidade arqueológica americana, Clovis-primeiro tem sido desacreditado por várias descobertas que apontam uma ocupação mais antiga.
No livro O Povo de Luzia – Em busca dos primeiros americanos, o bioantropólogo Walter Alves Neves e o geógrafo Luís Beethoven Piló, ambos da USP, apresentam uma teoria diferente. Ela propõe que os primeiros americanos chegaram ao continente em duas levas migratórias – uma há 14 mil anos e outra há 11 mil anos –, vindas da Ásia pelo estreito de Bering. A primeira seria composta por uma população com traços semelhantes aos dos africanos e aborígines australianos. A segunda era de mongoloides, semelhantes aos asiáticos e índios americanos atuais. Ao longo do tempo, esses povos se miscigenaram no novo continente.
Outra teoria, proposta em 1983 pelo antropólogo americano Christy Turner e baseada em um amplo levantamento da diversidade dentária no Extremo Oriente, incluiu análises de populações pré-históricas da Austrália e Melanésia; do sul, leste e nordeste da Ásia; e das Américas. Diante dos dados obtidos, Turner concluiu que houve três levas migratórias da Sibéria para as Américas.
A primeira, há 11 mil anos, teria originado todos os índios das Américas Central e do Sul e a maioria dos nativos norte-americanos. A segunda teria chegado há 9 mil anos e originado os índios de língua na-dene, ancestrais dos apaches e navajos, representados sobretudo na costa oeste de EUA e Canadá. A última, com chegada há 4 mil anos, era composta por ancestrais dos esquimós e aleutas (das ilhas Aleutas, a oeste do Alasca).
Controvérsias à parte, o que se sabe ao certo sobre a dispersão do Homo sapiens é que ele surgiu na África entre 200 e 100 mil anos atrás e dali saiu há pelo menos 50 mil anos, dirigindo-se à Europa e à Ásia, e desta para a Polinésia e a Oceania, ocupando todos os espaços habitáveis. Enquanto se espalhavam pelo mundo, esses grupos tomaram rumos evolutivos diversos, que levaram à diferença de aparência perceptível entre Colombo e o povo que o recebeu.
Conexão africana
Uma das mais polêmicas teorias sobre a ocupação da América é a da arqueóloga Niéde Guidon, baseada em suas descobertas em vários sítios arqueológicos na região de São Raimundo Nonato, no Piauí. Para ela, o homem chegou à região há 100 mil anos, vindo da África, pelo Atlântico. Segundo Niéde, nessa época o planeta estava num período glacial, com o mar 120 metros abaixo de seu nível atual. “Com isso, o número de ilhas entre as costas euroafricana e sul-americana era bem maior”, diz. “Além disso, as correntes marítimas favoreciam a passagem para oeste, para o Caribe e o litoral norte do Brasil.”
Segundo Niéde – arqueóloga paulista que fez carreira na França, voltou ao Brasil e desde 1978 faz escavações no sul do Piauí –, hoje existem provas de que houve diversas vagas migratórias para as Américas, e não somente a que levou ao sítio Clovis, nos EUA. “Há elementos que indicam a chegada de grupos asiáticos, de origem provavelmente australiana”, diz. “No sudeste do Piauí podem ter chegado grupos de origem africana, pois a África passou por secas intensas por volta de 130 mil anos atrás e os habitantes saíam para o mar em busca de comida.”
Ainda de acordo com ela, como ventos e correntes vêm da África para o nordeste do Brasil, uma tempestade pode ter levado um barco a se afastar daquele continente e a terminar aportando aqui. Essa passagem teria sido feita para o Caribe e a costa norte do Brasil, com um ponto de chegada próximo ao atual rio Parnaíba (então muito grande) e outro no rio São Francisco. “Depois, ao longo de milênios, esses seres humanos se espalharam pelo continente, migrando inclusive para o norte, onde se encontraram, muito mais tarde, com os asiáticos que entraram pelo estreito de Bering”, explica.
Durante muito tempo essa ideia foi ridicularizada pela comunidade arqueológica. Suspeitava-se que as provas apresentadas por Niéde – ferramentas de pedra e restos de fogueiras descobertas pela pesquisadora em São Raimundo Nonato – não eram obra do homem, mas da própria natureza. Em 2006, porém, ela marcou um tento importante: uma análise de Eric Boeda, da Universidade de Paris, considerado um dos maiores especialistas do mundo em tecnologia lítica (de pedra) pré-histórica, mostrou que os artefatos foram mesmo produzidos por humanos. “O que se discute agora é como esses homens chegaram aqui”, diz Niéde.