quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Um veneno e muitas possibilidades


Já pisou sem querer num “inocente” montinho de terra e de repente se viu atacado por dezenas de formiguinhas avermelhadas de ferroada dolorosa? Pois é, são as tais lava-pés, assim chamadas por que é preciso sair correndo e lavar os pés para se livrar delas!
As lava-pés são comuns no Brasil e atendem por outros nomes igualmente relacionados ao poder de suas picadas: caga-fogo, formiga-brasa, formiga-de-fogo, formiga-malagueta, jiquitaia (sal com pimenta, em tupi-guarani), mordedeira, queima-queima e por aí vai. Esses nomes vulgares, na verdade, se referem a diversas espécies de formigas do gênero Solenopsis, todas com o mesmo comportamento agressivo. As mais abundantes e de distribuição mais ampla são S. geminata, S. saevissima e S. invicta.
Nos anos 1930, fazendeiros dos Estados Unidos registraram os primeiros ninhos dessas formigas nas pastagens do Alabama. Elas teriam sido involuntariamente “exportadas” da Argentina, de carona em cargas agrícolas. Em 20 anos, todos os estados do sul dos EUA estavam tomados pelas fire ants (formigas-de-fogo) para desgraça das pessoas alérgicas e sensíveis.
Nos anos seguintes, os Estados Unidos passaram de invadidos a “exportadores”, distribuindo amplamente a praga em suas cargas agrícolas. Assim, as fire ants se tornaram invasoras cosmopolitas, causando inclusive acidentes fatais na Espanha, Vietnã, Austrália e China. Até hoje causam problemas e são sistematicamente combatidas com pesticidas pesados, um remédio pior do que o próprio veneno.
Uma possibilidade de usar inimigos naturais para controlar essas formigas surgiu de uma pesquisa realizada no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp). Ao estudar a Ecologia Química dessas formigas, em sua tese de doutorado, Adriana Pianaro encontrou 4 compostos alcaloides (solenopsinas) provavelmente associados ao mecanismo de reconhecimento das formigas.
“Na literatura só havia menção a dois desses compostos, mas encontramos quatro e, através deles, pudemos estabelecer um padrão de identificação das formigas provenientes de diferentes regiões”, explica a pesquisadora Anita Marsaioli, coordenadora de um grupo de pesquisa em síntese orgânica, biocatálise e ecologia química na Unicamp e orientadora da tese de Adriana Pianaro, realizada com bolsa da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “Nesse estudo trabalhamos com o veneno de formigas Solenopsis saevissima de Campinas e Ubatuba, em São Paulo, e também do Rio de Janeiro, comparando a composição química de operárias e rainhas, de vários ninhos. Acreditamos que as formigas podem se reconhecer por estes alcaloides e, se isso é verdade, talvez as espécies predadoras de formigas também possam localizá-las por meio desses compostos químicos”.
Um composto capaz de atrair inimigos naturais aumentaria a eficiência do uso de predadores ou parasitoides para controlar as lava-pés onde elas são invasoras. Esse tipo de controle de pragas é considerado ambientalmente mais seguro porque é muito mais específico do que os pesticidas químicos. E, em geral, praticamente não há efeitos sobre a saúde humana.
Agora o estudo foi ampliado e outra doutoranda da Unicamp – Francisca Diana da Silva Araújo – está analisando a composição do veneno de formigas coletadas em diversos ninhos, da Bahia até o Rio Grande do Sul. “Nossa especialidade é a química por isso sempre trabalhamos em parceria com biólogos”, lembra Anita. No estudo com formigas, o parceiro foi o biólogo Eduardo Gonçalves Peterson Fox, hoje da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“As solenopsinas são alcaloides presentes apenas nas formigas do gênero Solenopsis. Embora sejam difíceis de sintetizar, eles apresentam atividades de grande interesse”, observa Eduardo Fox. “Na UFRJ estamos pesquisando a ação antifúngica e um possível uso industrial, contra a formação de limo em encanamentos”. O limo, vale ressaltar, costuma ser combatido com químicos despejados na água, incluindo detergentes e fixadores, corrosivos e poluentes. Um composto derivado do veneno das lava-pés significaria reduzir – e muito – os impactos ambientais desses tratamentos.
O veneno das formigas-de-fogo ainda está em estudo, nos Estados Unidos, como quimioterápico para limitar o crescimento de tumores, pois seus compostos impedem a formação de novos vasos sanguíneos (que irrigam as células cancerosas). “Aparentemente, a administração do veneno via oral reduziria sua toxicidade, embora ainda sejam necessários muitos testes para a comprovação disso”, acrescenta Fox. Segundo ele, nos EUA ainda há uma patente para o uso do veneno de lava-pés no controle de parasitas como pulgas e carrapatos em cães e gatos e, na China, estão em curso testes como inseticida, no controle de lagartas. Outra patente norteamericana indica o veneno para idosos, contra a degradação cognitiva decorrente do envelhecimento.
Para todos estes usos, o grande problema é a extração do veneno, já que a síntese em laboratório é complicada. No Exterior, a extração é feita formiguinha a formiguinha, por sucção. E olhe que o tamanho médio de cada formiguinha não passa de meio centímetro!
No Brasil, Eduardo Fox desenvolveu um método mais prático: ele coloca as formigas num recipiente com paredes antiaderentes e acrescenta água. A terra (do ninho) afunda e as formigas boiam, pois têm o corpo revestido de cera. Em seguida, o especialista despeja na água um solvente orgânico apolar, como o hexano. O contato com o solvente obriga as formigas a soltar o veneno na água. Em 10 minutos dá para coletar 500 miligramas do veneno, numa mistura bifásica, fácil de separar.
Em resumo, mantenham o olho-vivo nas formigas lava-pés. Essas pesquisas todas prometem desdobramentos bem interessantes nos próximos anos!
National Geographic.com

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