segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O doce da fé

O doce: preparado desde a Idade Média, virou souvenir dos peregrinos
 
Assombrado com as chuvas de estrelas que despencavam sobre o bosque de Libredón, na Galícia, hoje comunidade autônoma da Espanha, um eremita chamado Pelayo procurou o bispo da região, no ano 813. Sua impressão era tratar-se de manifestação sobrenatural. O bispo reuniu um pequeno séquito, dirigiu-se ao local e constatou a veracidade do relato.
No meio da vegetação foi descoberta uma urna de mármore na qual existiam restos mortais identificados como sendo de Santiago ou São Tiago Maior, um dos doze apóstolos de Jesus Cristo. Irmão de São João Evangelista, ele havia sido decapitado no ano 44 da nossa era, em Jerusalém, por ordem de Herodes Agripa I, rei da Judéia. Portanto, a tradição popular católica registra há doze séculos a história dessa descoberta.
O fenômeno luminoso, que para intérpretes modernos seriam chuvas de meteoros, fez o lugar ser chamado de Campus Stellae (Campo das Estrelas) e, a seguir, Santiago de Compostela. Para celebrá-lo, foi erguida uma capela em louvor do santo, transformada em igreja e, depois, entre os anos 1075 e 1112, em imponente catedral de estilo pré-românico. Desde então, tem sido um dos maiores centros de peregrinação do mundo. No catolicismo, só Roma e Jerusalém o superariam em afluência.
 
Detalhe da catedral galega dedicada ao santo: centro mundial de romaria
 
Os peregrinos aparecem o ano inteiro. Muitos percorrem a pé os chamados Caminhos de Santiago – trajetos europeus que levam à catedral de Santiago de Compostela. O ápice das romarias acontece a 25 de julho, festa do santo, padroeiro da Galícia, da Espanha, do Chile, da Guatemala e de Nicarágua. Por sinal, caiu no final da semana passada. É dia em que os sinos dobram, há missas solenes, exposições de arte, representações teatrais e concertos musicais.
Os devotos acreditam que ir a Santiago de Compostela é uma experiência mística prodigiosa: mexe com a sensibilidade, revigora a fé, alarga e aplaina a estrada do céu. Os peregrinos deixam a cidade enlevados e, ao mesmo tempo, fascinados pelo seu ícone gastronômico: a imperdível Torta de Santiago.
A receita desse doce leva amêndoas moídas, farinha de trigo, açúcar, ovos, canela e raspas de limão-siciliano. Antes de ser partida, a torta recebe no alto, em açúcar de confeiteiro, com auxílio de um molde, a silhueta da Ordem Militar de Santiago. Essa instituição, hoje honorífica, foi instituída por Afonso VIII de Castela e aprovada pelo Papa Alexandre III, em bula de 1175.
Conforme a tradição, os restos de Santiago foram parar em Santiago de Compostela graças a uma série de fatos históricos. Após a crucificação de Jesus Cristo, os apóstolos se dispersaram pelo mundo, pregando o cristianismo. São Tiago escolheu a Galícia, na antiga Hispânia (nome dado à Península Ibérica pelos romanos), onde teria estado nos anos 36–37 ou 40. Retornando à Judeia, foi preso e martirizado.
 
O santo, em pintura de Rembrandt: seus restos estavam escondidos em um bosque
 
Seguindo o costume da época, os discípulos colocaram seus restos em uma urna de mármore e devolveram à região do último apostolado.
Viajaram em uma embarcação e o sepultaram na Galícia. Com o endurecimento da perseguição aos cristãos da Hispânia, pelos romanos, seu túmulo foi abandonado no século III e o local caiu no esquecimento. Foi redescoberto pela chuva de estrelas.
Desde a Idade Média, Santiago de Compostela prepara a Torta de Santiago. Os peregrinos a consomem na cidade e, quando vão embora, levam a sobremesa como souvenir. Isso a torna uma das mais preparadas no mundo. Nem sempre a Torta de Santiago teve a designação atual. Originalmente, chamava-se Bizcocho de Almendra. Assim a designa um relato de 1577.
Continuou a ter o nome primitivo no “Cuaderno de Confitería”, de Luis Bartolomé de Leybar, de 1838. No final do século 19, porém, mudou para Tarta (Torta, em português) de Alméndro. Mas livros culinários espanhóis do século 20 a consagraram definitivamente como Torta de Santiago. Assim foi mencionada em 2006, ao merecer o status de produto de Indicação Geográfica Protegida (IGP), conferido pela União Europeia
Quando industrializada, a Torta de Santiago apresenta textura consistente, granulada e deve ser consumida em até três meses. Se artesanal, revela-se mais úmida e macia, a validade fica restrita a uma semana. Ninguém explica como ela surgiu. Pode ter sido criada por um devoto do santo; ou por um peregrino que percorreu os Caminhos de Santiago; ou, ainda, por um doceiro local. Seus apreciadores, entretanto, garantem que o sabor é sempre divino.
Veja.com

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