O vilarejo de Film, aninhado na encosta dos montes da península Musandam, em Omã, tremeluz como um braseiro. Bodes arfam à sombra de barcos virados de cabeça para baixo e dos muros de uma mesquita. Toda vez que respiro sinto minhas narinas pegarem fogo. Meu companheiro de mergulho, o iemenita Sami Alhaj, comenta: “No fundo do mar, com os corais, é como se a gente estivesse no paraíso. Aqui fora, com esse vento, é o inferno”.
Abandonamos depressa o inferno e descemos de novo até o éden marinho. Tanto quanto a temperatura, essa passagem entre dois mundos é marcada pelas cores. Em terra, predominam os tons do condimento suq – pimenta, canela, mostarda –, já o mundo submarino está empapado das tonalidades suntuosas do palácio de um sultão. Os braços compridos de cor azul-anil dos corais moles mesclam-se às frondes cor de romã dos lírios-do-mar. Vigiando desde as gretas, com o corpo manchado de cinza, moreias exibem nas bocarras abertas uma explosão de tons amarelos enquanto um tipo de peixe-borboleta dardeja ao lado faíscas alaranjadas.
Se tivesse conhecido a riqueza desses mares, a lendária Sherazade teria histórias suficientes para outras mil e uma noites. Por exemplo, poderia ter despertado a curiosidade do sultão se falasse do enigma dos recifes de Dhofar, no sul do Omã: no inverno, eles se recobrem de jardins de coral e, no verão, de florestas de algas. O elemento desencadeador dessa mudança ecológica registrada apenas ali é a chegada do khareef, a monção do sudoeste, que provoca uma ressurgência de águas geladas e ricas em nutrientes.
As algas, inativas durante o verão, reagem ao ambiente frio com uma proliferação luxuriante que recobre os recifes de frondes verdes, vermelhas e douradas.
Ou, então, a princesa poderia ter contado a história da tribo dos salteadores-do-lodo, cujos domínios ficam na costa da baía do Kuweit. Em persa, o nome deles significa “preguiçosos”, pois parecem letárgicos demais para acompanhar de volta a maré que recua – em vez disso, cada um desses peixes anfíbios de olhos saltados prefere ficar na própria piscina que constrói na lama.
E é possível que mencionasse ainda os caranguejos ocipodídeos da ilha Masira. Toda noite, eles erguem na areia perfeitas réplicas em miniatura do monte Fuji, as quais são desfeitas pelo vento no dia seguinte. Enfim, Sherazade não sentiria falta de assuntos para entreter o sultão.
“ Eu sou o mar. Minhas profundezas guardam todos os tesouros. Indagaram eles aos mergulhadores sobre as minhas pérolas?”, escreveu há um século o poeta egípcio Muhammad Hafiz Ibrahim. Hoje restam poucos desses paladinos do mar, os pescadores de pérolas do passado, que buscavam o maior tesouro de todos. Quarenta, 50, 100 vezes ao dia desciam até o fundo do mar, a profundidades de até 20 metros, sem máscara e vestindo quase sempre apenas um fino traje de pano para se proteger das queimaduras de águasvivas. Contra outras ameaças, contavam apenas com a sorte. Muitos morriam das ferroadas de raias, dos espinhos venenosos de peixes-pedra, das mordidas de tubarões. Peixes-palhaço volta e meia investiam contra os olhos deles. Seus tímpanos se rompiam, e alguns ficavam cegos devido ao contato com a água salgada.
As pérolas eram os diamantes do mundo antigo. Na época de Hafiz, constituíam o recurso mais prezado no golfo Pérsico, com 70 mil homens dedicados a sua coleta. Mas os pescadores de pérolas mal viam a riqueza que produziam. As ostras eram jogadas em montes comunitários para ser abertas no dia seguinte, quando estivessem mortas. Mesmo que encontrasse uma pérola extraordinária, um mergulhador jamais saberia. Continuaria no mar para saldar dívidas. Dívidas herdadas dos pais, e dos pais de seus pais.
National Geographic
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