“A natureza ama esconder-se” tem sido a principal tradução de um dos fragmentos que restaram do pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito, que viveu nos séculos 6º e 5º a.C. em Éfeso, na atual Turquia.* Levando em conta que phýsis não significa apenas “natureza”, na década de 1940 o alemão Martin Heidegger (1889-1976) traduziu essa expressão, numa primeira abordagem, para “o aparecimento favorece o encobrimento”.** Grosso modo —pois a reflexão desse pensador vai muito além—, tudo que surge encobre. Isso dá o que pensar sobre o conhecimento em geral, a vida, a política e, no presente caso, sobre a devastação da Amazônia.
Nesta semana o governo finalmente divulgou o cálculo final do desmatamento da Amazônia em 2013, ajustando para 5.891 km2 a estimativa preliminar de 5.843 km2, apresentada em dezembro do ano passado. Uma vez acertado esse dado, que era esperado desde maio, podemos ajustar também outra medição relevante, mas que tem sido praticamente esquecida, soterrada sob a avalanche dos diferentes tipos de dados sobre a devastação dessa região: o quanto dessa floresta já foi desmatado.
Até 2013 foram desmatados 759.213 km2, uma área aproximadamente igual a metade do Amazonas ou ao triplo do Estado de São Paulo, como noticiou a Folha na edição do Dia Mundial do Meio Ambiente (5.jun). Essa extensão corresponde a cerca e 19% da extensão original da Floresta Amazônica, que era de aproximadamente 4 milhões de quilômetros quadrados.
Dois enfoques
A imprensa divulgou sob dois enfoques diferentes esse ajuste feito pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Os veículos que seguiram o ângulo governista reproduziram os termos da chamada da nota “Desmatamento da Amazônia é o segundo menor em 25 anos”, divulgada na quarta-feira (10.set) pelo Ministério do Meio Ambiente. A informação é verdadeira, mas não é nova, pois já havia sido anunciada no ano passado.
Outros veículos destacaram o fato de que o ajuste trouxe um dado maior que a estimativa apresentada no ano passado, que indicava um aumento de 28% em relação ao ano anterior. A Folha, por exemplo, no mesmo dia noticiou “Desmatamento da Amazônia subiu 29% em 2013, mas continua baixo”. A ressalva faz sentido, tendo em vista a drástica redução dessa devastação nos últimos 25 anos, como mostra o histórico apresentado no quadro a seguir.
Estrago é maior
O governo tem razão ao destacar que as taxas de desmatamento de 2012 e 2013 foram as menores nos últimos 25 anos. Mas não podemos subestimar o fato de que nesse mesmo período, que corresponde a menos de um vigésimo de toda a história do Brasil, o desmatamento total acumulado dobrou, crescendo de 377.600 km2 em 1988 para 759.213 km2 em 2013. Na Amazônia, a área total de cobertura florestal eliminada, que há 25 anos era equivalente a 65% do território de Minas Gerais, hoje abrange uma extensão maior que a soma das superfícies desse Estado, Ceará e Sergipe.
A devastação, na verdade, ainda é maior que isso. Os números desse monitoramento, que é realizado por meio de satélites anualmente desde 1988 pelo projeto Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal), do Inpe, correspondem somente às superfícies onde houve eliminação total da cobertura vegetal por meio de corte raso.
Esses dados não levam em consideração áreas muito degradadas pela extração seletiva de madeira e também por incêndios ocorridos anteriormente. No fim de agosto estive em uma dessas áreas, na transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, no município de Querência, no norte de Mato Grosso, bem perto da fronteira com o Pará. A foto a seguir é de um dos locais onde o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) desenvolve pesquisas sofre o efeito de queimadas nesse ambiente.
Esse tipo de devastação não é registrado pelo Prodes, mas por outro projeto do Inpe, o Degrad (Mapeamento da Degradação Florestal da Amazônia Brasileira). A extensão do estrago nessas áreas é muito variável porque é influenciado pelas oscilações das condições climáticas. Nos anos mais secos, essa degradação tende a ser maior.
O monitoramento pelo Degrad começou a ser realizado em 2007. Seus dados mais recentes foram apresentados pelo Inpe em 12 de agosto, como mostrei no post “Quem ganha com a devastação em Mato Grosso” (27.ago). Eles apontaram que em 2011 a extensão dessa devastação chegou a 24.650 km2, uma área aproximadamente equivalente à metade do Estado de São Paulo. Esse estrago diminuiu para 8.634 km2 em 2012 e para 5.434 km2 em 2013.
Falta de atenção
O Brasil e o mundo têm dado muita atenção aos dados anuais do Prodes e também aos de outro monitoramento, o Deter, realizado mensalmente pelo Inpe desde 2004 para apoiar a fiscalização e o controle de desmatamento. (Esse sistema de alerta detecta ocorrências de corte raso e também as que estão em processo degradação florestal, mas seu mapeamento é menos preciso que o Prodes e o Degrad.)
Mas é preciso dar mais atenção também ao Degrad e, sobretudo, à extensão total do desmatamento da Amazônia por corte raso. Na página do Prodes tem sido registrado o desmatamento acumulado desde 1988, quando começou a ser realizado esse monitoramento. Mas o governo deveria anunciá-los anualmente também, e com destaque, com os números correspondentes à área do desmatamento total acumulado de florestas desmatadas na Amazônia Legal e em cada um dos seus nove Estados.
Se continuarmos atentos apenas aos números da vez, continuaremos a ver as árvores sem enxergar a floresta.
Maurício Tuffani
Folha de S.Paulo
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