quarta-feira, 29 de março de 2017

Como a destruição do cerrado pode fazer faltar água no Brasil inteiro

Medidor na Barragem do Descoberto.O reservatório atingiu o nível mais baixo da história (Foto: GABRIEL JABUR)

Rio Descoberto, que marca a divisa do estado de Goiás com o Distrito Federal, segue em desabalada corrida até encontrar uma parede. Uma barreira, a cerca de 50 quilômetros a oeste de Brasília, que faz o rio virar um lago, destinado a abastecer com água por volta de 1,8 milhão de pessoas que vivem na região. Quase todos os anos, o Descoberto segue um itinerário previsível: enche na estação chuvosa, entre outubro e abril. Perde volume em meses de seca. Em 2017, não foi assim. Os meses de chuva chegaram, a água não veio. O Descoberto virou um filete desaguando em uma represa quase vazia. E a capital do país passou a Semana da Água com o tom da escassez.
Desde o ano passado, o Distrito Federal enfrenta uma severa crise hídrica. As duas barragens que abastecem a região, Santa Maria e Descoberto, mantêm níveis muito abaixo do esperado para a época: Santa Maria acumula 48% da água que poderia represar. Descoberto, 44%. Já foi pior – ficou abaixo dos 20% em janeiro. A crise hídrica fez o governo decretar racionamento sem data para acabar. Ela não foi uma surpresa: desde 2016, a Agência Nacional de Águas (Ana) incluia região em sua lista de áreas vulneráveis em relação ao abastecimento de água. Para evitá-la, faltou planejamento público – o governo poderia ter criado formas de captar água em outras fontes, em lugar de depender, majoritariamente, de duas barragens. Faltaram chuvas e faltou proteger a vegetação da região.
O Cerrado, por onde corre o Rio Descoberto, é o segundo maior bioma do Brasil: são mais de 2 milhões de quilômetros quadrados espraiados por 12 estados. É também lar de uma imensa diversidade de vida: mais de 13 mil espécies de plantas, 850 de aves e 250 de mamíferos. Está encarapitado sobre três dos principais aquíferos da América do Sul: o Guarani, o Bambuí e o Urucuia. A água que chove no Cerrado penetra o solo e fica armazenada na rocha porosa. É distribuída para o Brasil inteiro: estima-se que,  em diferentes proporções, o Cerrado abasteça oito das 12 regiões hidrográficas do país. A água do subsolo ainda responde por cerca de 90% da vazão dos rios do bioma. “Só que os níveis da água subterrânea estão diminuindo com o tempo”, diz José Eloi, especialista em hidrogeologia e professor da Universidade de Brasília (UnB). “Córregos que costumavam ser perenes, agora desaparecem em períodos de seca.” Com frequência cada vez maior, a água que deveria penetrar o solo, para alimentar aquíferos e lençóis freáticos, escorre pela superfície e se evapora. Quando a chuva vai embora, diminui a vazão dos rios que alimentam as barragens que abastecem as casas. O fenômeno é consequência de um acelerado processo de desmatamento.
Não é um problema só do Distrito Federal. O Cerrado é a grande vítima invisível do desmatamento no Brasil. Enquanto os olhos nacionais e internacionais estão voltados para a Floresta Amazônica, a diversificada vegetação do Cerrado (que vai de campos naturais até – acredite – formações florestais) vem sendo varrida do mapa. O desmatamento no Cerrado ganhou fôlego na década de 1970, estimulado por projetos do governo que favoreciam a ocupação da região.  Plana e fácil de irrigar, a área era ideal para a expansão da agropecuária. Hoje, o Cerrado é o bioma brasileiro que concentra o maior rebanho bovino (cerca de 36% de todo o gado) e onde mais se produz soja (mais de 63% de todo o grão brasileiro). Em menos de 50 anos, quase 50% da vegetação original desapareceu. E 30% da área virou pasto: “Foi um processo de desmatamento muito rápido, sem precedentes”, diz Laerte Ferreira, da Universidade Federal de Goiás (UFG). E o desmatamento continua até hoje. Enquanto o ritmo do desmatamento na Floresta Amazônica caiu nos últimos dez anos – conquista comemorada internacionalmente pelo país –, a devastação do Cerrado se manteve no mesmo ritmo. Nos últimos dez anos, o Cerrado perdeu 50.000 quilômetros quadrados, mais que o estado do Rio de Janeiro. A maior fronteira de desmatamento do Brasil hoje é a expansão da soja na região do Cerrado chamada Matopiba (áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia). Entre 2015 e 2016, o desmatamento lá foi de 2.000 quilômetros quadrados, quatro vezes mais que no Arco do Desmatamento, área mais vulnerável da Amazônia Legal.

A DESTRUIÇÃO DAS NASCENTES O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro – e abastece, com água, o país todo. Essa capacidade está ameaçada pelo desmatamento acelerado (Foto: Fonte: Laerte Ferreira/Lapig UFG)
Embora não tenha sempre uma formação exuberante de floresta (às vezes tem), o Cerrado possui um papel importante para matar a sede do país. A vegetação original do Cerrado tem raízes longas, que entram profundamente no solo e criam caminhos por onde a água pode passar: “Quando as árvores morrem, essas raízes formam um caminho preferencial para a infiltração”, diz Eloi, da UnB. Substituí-la dificulta a recarga do aquífero. A vegetação exótica tem raí­zes curtas, que não se prestam a esse serviço. Nas áreas de pastagem mal manejadas, o pisoteio do gado ainda compacta o solo. A água não penetra nas pastagens degradadas. Estima-se que 70% delas apresentem algum grau de degradação. O desmatamento do Cerrado demorou a ser visto como um problema. A vegetação do bioma é variada, com regiões de mata fechada. Mas é marcada pelos campos abertos e pelas formações arbustivas. “Por muito tempo, o Cerrado não foi considerado floresta – e a legislação brasileira protegia somente florestas”, diz Gabriela Savian, especialista em egislação ambiental que trabalhou em ONGs como a Conservação Internacional. “Foi a partir do Código Florestal de 1965 que passamos a proteger a ‘vegetação natural’.” O Cerrado só apareceu explicitamente nesse texto em 1989, quando foi aprovada uma lei que modificava o código para incluir o bioma.
Código Florestal protege menos o Cerrado que outros biomas. A lei cobra das propriedades rurais que mantenham 35% do Cerrado nativo (em áreas de floresta, a cobrança é de 80%). O Cerrado ainda é mais vulnerável porque parcela menor dele é coberta por reservas e unidades de conservação – 11%, em comparação com 50% na Amazônia. Ativistas defendem que essa proporção aumente: “Somente a lei não foi suficiente para evitar o desmatamento”, diz Gabriela. Mesmo assim, calcula-se que, se a lei tivesse sido respeitada, os danos observados hoje seriam sensivelmente menores: “Em um cálculo grosseiro, 30% do Cerrado teria sido desmatado”, diz Laerte, da UFG. E não os quase 50% que foram perdidos.
Há sinais animadores de mudança. A capa de invisibilidade pode estar se desvanecendo. No começo de março, a ONG americana Mighty Earth divulgou um estudo que demonstra que grandes empresas haviam desmatado áreas do Cerrado para plantar soja – usada para alimentar rebanhos de uma rede global de fast-food. O levantamento repercutiu na imprensa internacional. “A resposta a nosso relatório foi surpreendente. Há grandes e pequenas empresas e pessoas comuns, hoje, interessadas em saber o que é possível fazer para deter a destruição desse bioma”, diz Anahita Yousefi, diretora de Campanhas da Mighty Earth e uma das autoras do estudo. “Algumas das maiores empresas de bens de consumo do mundo, como o Walmart, o Carrefour e o McDonald’s (que não foi alvo do estudo), hoje oferecem apoio a uma moratória da soja também para o Cerrado. Empresas como Wilmar e Louis Dreyfus, que competem com as produtoras de soja denunciadas pela ONG, também apoiam a ideia. Graças à pressão do público, agora essas grandes empresas reconhecem que compartilham a responsabilidade de evitar a destruição desnecessária do Cerrado.”
A pressão pela conservação poderá contar com mais informações também. Parte do sucesso brasileiro em proteger a Amazônia aconteceu graças a um eficiente sistema de monitoramento do desmatamento por satélite. Em 2015, o Ministério da Ciência conseguiu financiamento internacional para desenvolver, para o Cerrado, algo semelhante. Além disso, cresce a consciência de que é possível cultivar alimentos e preservar a vegetação nativa. Sobretudo em uma região como o Cerrado, dominada por pastagens improdutivas. “É possível ampliar a área de cultivo no Cerrado sem derrubar uma só árvore”, diz Bernardo Strassburg, professor da PUC-Rio. As pastagens na região abrigam um boi por hectare. Estudos feitos por Strassburg mostraram ser possível aumentar esse número para três, sem degradar o terreno. A área liberada seria superior à expansão projetada dos cultivos de soja e cana até 2040 em todo o país.
Proteger o que resta do Cerrado é urgente porque as áreas degradadas no bioma são de difícil recuperação. A reconstituição é feita com plantas nativas intercaladas à vegetação exótica: “Mas é um processo complicado, que ainda não dominamos”, diz Rafael Loyola, professor da Universidade Federal de Goiás. Por vezes, a vegetação nativa replantada não vinga. As peculiaridades de formação do bioma dificultam. Ele surgiu há 65 milhões de anos: “O Cerrado está entre os ambientes mais antigos da Terra”, diz Altair Barbosa, professor aposentado da PUC-Goiás e especialista em Cerrado. “Já chegou a seu apogeu evolutivo.” Isso significa que qualquer perturbação no equilíbrio fino entre suas espécies pode causar danos irreparáveis. E custar recursos hídricos importantes para o país todo.
BERÇO DAS ÁGUAS O Cerrado alimenta oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Alguns dos principais rios do país dependem das nascentes do Cerrado (Foto: Fonte:  Jorge Furquim/Embrapa Cerrados)


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