O Rio Descoberto, que marca a divisa do estado de Goiás com o Distrito Federal, segue em desabalada corrida até encontrar uma parede. Uma barreira, a cerca de 50 quilômetros a oeste de Brasília, que faz o rio virar um lago, destinado a abastecer com água por volta de 1,8 milhão de pessoas que vivem na região. Quase todos os anos, o Descoberto segue um itinerário previsível: enche na estação chuvosa, entre outubro e abril. Perde volume em meses de seca. Em 2017, não foi assim. Os meses de chuva chegaram, a água não veio. O Descoberto virou um filete desaguando em uma represa quase vazia. E a capital do país passou a Semana da Água com o tom da escassez.
Desde o ano passado, o Distrito Federal enfrenta uma severa crise hídrica. As duas barragens que abastecem a região, Santa Maria e Descoberto, mantêm níveis muito abaixo do esperado para a época: Santa Maria acumula 48% da água que poderia represar. Descoberto, 44%. Já foi pior – ficou abaixo dos 20% em janeiro. A crise hídrica fez o governo decretar racionamento sem data para acabar. Ela não foi uma surpresa: desde 2016, a Agência Nacional de Águas (Ana) incluia região em sua lista de áreas vulneráveis em relação ao abastecimento de água. Para evitá-la, faltou planejamento público – o governo poderia ter criado formas de captar água em outras fontes, em lugar de depender, majoritariamente, de duas barragens. Faltaram chuvas e faltou proteger a vegetação da região.
O Cerrado, por onde corre o Rio Descoberto, é o segundo maior bioma do Brasil: são mais de 2 milhões de quilômetros quadrados espraiados por 12 estados. É também lar de uma imensa diversidade de vida: mais de 13 mil espécies de plantas, 850 de aves e 250 de mamíferos. Está encarapitado sobre três dos principais aquíferos da América do Sul: o Guarani, o Bambuí e o Urucuia. A água que chove no Cerrado penetra o solo e fica armazenada na rocha porosa. É distribuída para o Brasil inteiro: estima-se que, em diferentes proporções, o Cerrado abasteça oito das 12 regiões hidrográficas do país. A água do subsolo ainda responde por cerca de 90% da vazão dos rios do bioma. “Só que os níveis da água subterrânea estão diminuindo com o tempo”, diz José Eloi, especialista em hidrogeologia e professor da Universidade de Brasília (UnB). “Córregos que costumavam ser perenes, agora desaparecem em períodos de seca.” Com frequência cada vez maior, a água que deveria penetrar o solo, para alimentar aquíferos e lençóis freáticos, escorre pela superfície e se evapora. Quando a chuva vai embora, diminui a vazão dos rios que alimentam as barragens que abastecem as casas. O fenômeno é consequência de um acelerado processo de desmatamento.
Não é um problema só do Distrito Federal. O Cerrado é a grande vítima invisível do desmatamento no Brasil. Enquanto os olhos nacionais e internacionais estão voltados para a Floresta Amazônica, a diversificada vegetação do Cerrado (que vai de campos naturais até – acredite – formações florestais) vem sendo varrida do mapa. O desmatamento no Cerrado ganhou fôlego na década de 1970, estimulado por projetos do governo que favoreciam a ocupação da região. Plana e fácil de irrigar, a área era ideal para a expansão da agropecuária. Hoje, o Cerrado é o bioma brasileiro que concentra o maior rebanho bovino (cerca de 36% de todo o gado) e onde mais se produz soja (mais de 63% de todo o grão brasileiro). Em menos de 50 anos, quase 50% da vegetação original desapareceu. E 30% da área virou pasto: “Foi um processo de desmatamento muito rápido, sem precedentes”, diz Laerte Ferreira, da Universidade Federal de Goiás (UFG). E o desmatamento continua até hoje. Enquanto o ritmo do desmatamento na Floresta Amazônica caiu nos últimos dez anos – conquista comemorada internacionalmente pelo país –, a devastação do Cerrado se manteve no mesmo ritmo. Nos últimos dez anos, o Cerrado perdeu 50.000 quilômetros quadrados, mais que o estado do Rio de Janeiro. A maior fronteira de desmatamento do Brasil hoje é a expansão da soja na região do Cerrado chamada Matopiba (áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia). Entre 2015 e 2016, o desmatamento lá foi de 2.000 quilômetros quadrados, quatro vezes mais que no Arco do Desmatamento, área mais vulnerável da Amazônia Legal.
Embora não tenha sempre uma formação exuberante de floresta (às vezes tem), o Cerrado possui um papel importante para matar a sede do país. A vegetação original do Cerrado tem raízes longas, que entram profundamente no solo e criam caminhos por onde a água pode passar: “Quando as árvores morrem, essas raízes formam um caminho preferencial para a infiltração”, diz Eloi, da UnB. Substituí-la dificulta a recarga do aquífero. A vegetação exótica tem raízes curtas, que não se prestam a esse serviço. Nas áreas de pastagem mal manejadas, o pisoteio do gado ainda compacta o solo. A água não penetra nas pastagens degradadas. Estima-se que 70% delas apresentem algum grau de degradação. O desmatamento do Cerrado demorou a ser visto como um problema. A vegetação do bioma é variada, com regiões de mata fechada. Mas é marcada pelos campos abertos e pelas formações arbustivas. “Por muito tempo, o Cerrado não foi considerado floresta – e a legislação brasileira protegia somente florestas”, diz Gabriela Savian, especialista em egislação ambiental que trabalhou em ONGs como a Conservação Internacional. “Foi a partir do Código Florestal de 1965 que passamos a proteger a ‘vegetação natural’.” O Cerrado só apareceu explicitamente nesse texto em 1989, quando foi aprovada uma lei que modificava o código para incluir o bioma.
O Código Florestal protege menos o Cerrado que outros biomas. A lei cobra das propriedades rurais que mantenham 35% do Cerrado nativo (em áreas de floresta, a cobrança é de 80%). O Cerrado ainda é mais vulnerável porque parcela menor dele é coberta por reservas e unidades de conservação – 11%, em comparação com 50% na Amazônia. Ativistas defendem que essa proporção aumente: “Somente a lei não foi suficiente para evitar o desmatamento”, diz Gabriela. Mesmo assim, calcula-se que, se a lei tivesse sido respeitada, os danos observados hoje seriam sensivelmente menores: “Em um cálculo grosseiro, 30% do Cerrado teria sido desmatado”, diz Laerte, da UFG. E não os quase 50% que foram perdidos.
Há sinais animadores de mudança. A capa de invisibilidade pode estar se desvanecendo. No começo de março, a ONG americana Mighty Earth divulgou um estudo que demonstra que grandes empresas haviam desmatado áreas do Cerrado para plantar soja – usada para alimentar rebanhos de uma rede global de fast-food. O levantamento repercutiu na imprensa internacional. “A resposta a nosso relatório foi surpreendente. Há grandes e pequenas empresas e pessoas comuns, hoje, interessadas em saber o que é possível fazer para deter a destruição desse bioma”, diz Anahita Yousefi, diretora de Campanhas da Mighty Earth e uma das autoras do estudo. “Algumas das maiores empresas de bens de consumo do mundo, como o Walmart, o Carrefour e o McDonald’s (que não foi alvo do estudo), hoje oferecem apoio a uma moratória da soja também para o Cerrado. Empresas como Wilmar e Louis Dreyfus, que competem com as produtoras de soja denunciadas pela ONG, também apoiam a ideia. Graças à pressão do público, agora essas grandes empresas reconhecem que compartilham a responsabilidade de evitar a destruição desnecessária do Cerrado.”
A pressão pela conservação poderá contar com mais informações também. Parte do sucesso brasileiro em proteger a Amazônia aconteceu graças a um eficiente sistema de monitoramento do desmatamento por satélite. Em 2015, o Ministério da Ciência conseguiu financiamento internacional para desenvolver, para o Cerrado, algo semelhante. Além disso, cresce a consciência de que é possível cultivar alimentos e preservar a vegetação nativa. Sobretudo em uma região como o Cerrado, dominada por pastagens improdutivas. “É possível ampliar a área de cultivo no Cerrado sem derrubar uma só árvore”, diz Bernardo Strassburg, professor da PUC-Rio. As pastagens na região abrigam um boi por hectare. Estudos feitos por Strassburg mostraram ser possível aumentar esse número para três, sem degradar o terreno. A área liberada seria superior à expansão projetada dos cultivos de soja e cana até 2040 em todo o país.
Proteger o que resta do Cerrado é urgente porque as áreas degradadas no bioma são de difícil recuperação. A reconstituição é feita com plantas nativas intercaladas à vegetação exótica: “Mas é um processo complicado, que ainda não dominamos”, diz Rafael Loyola, professor da Universidade Federal de Goiás. Por vezes, a vegetação nativa replantada não vinga. As peculiaridades de formação do bioma dificultam. Ele surgiu há 65 milhões de anos: “O Cerrado está entre os ambientes mais antigos da Terra”, diz Altair Barbosa, professor aposentado da PUC-Goiás e especialista em Cerrado. “Já chegou a seu apogeu evolutivo.” Isso significa que qualquer perturbação no equilíbrio fino entre suas espécies pode causar danos irreparáveis. E custar recursos hídricos importantes para o país todo.
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