sábado, 26 de março de 2016

Uma nova bactéria, inventada pelo homem, pode dar pista de como a vida funciona

Cientistas americanos criaram uma bactéria em laboratório com um genoma mínimo - menor que o de qualquer outro ser vivo. Ela pode dar pistas sobre a evolução da vida. E pode ter aplicações econômicas.
A Syn 03 e sua antecessora. Nenhuma forma de vida conhecida tem genoma menor que o dela (Foto: Graig Venter/ Divulgação)
 
Ela é pequena. A menor do seu tipo. Mas está destinada a alcançar fama imensa. A Syn 3 é uma bactéria criada  por um grupo de cientistas liderados pelo geneticista americano Craig Venter. É uma espécie de forma de vida artificial - que não poderia surgir espontaneamente na natureza-  cujo código genético foi pensado em laboratório para ser o menor jamais encontrado em um organismo vivo. O DNA da Syn 3 é formado por 531 mil peças, organizadas em 473 genes. Quase nada, se comparado aos 20 mil genes presentes nos humanos. Seu desenvolvimento foi descrito em um estudo publicado nesta quinta-feira (24) no periódico cientifico Science. O trabalho foi recebido com entusiasmo pela classe científica. Em tamanho, a Syn 03 é insignificante. Por isso mesmo, ela é um dos avanços mais importantes da ciência da última década.

A Syn 3 é uma bactéria dotada com o que os cientistas chamam de “genoma mínimo”.  No seu DNA, há apenas aqueles genes essenciais para o organismo sobreviver e se reproduzir. Ela é importante por mais de uma razão. Primeiro por que pode nos ajudar a entender melhor qual a função de cada gene em uma célula. Apesar do avanço das técnicas de sequenciamento genético, nosso DNA e o de outros organismos vivos é ainda cheio de mistério. Os cientistas conseguem identificar cada gene de um ser vivo. Mas não conseguem dizer quais são suas funções exatas. A Syn 3 é tão pequena que pode permitir isso. "Nosso objetivo era encontrar uma célula tão simples , que seríamos capazes de determinar a função de cada gene ", disse  Venter, líder do trabalho, durante uma conversa com jornalistas.
 trabalho de Venter é ambicioso porque também tenta entender quais são os elementos celulares necessários para a existência da vida. A complexidade celular dos organismos modernos tornou essa busca complicada: “As celulas modernas possuem muitas funções que seriam dispensáveis, se elas existissem em ambientes ideais”, afirma Rosário Gil, professora de biologia evolutiva e especialista em genética microbiana da Universidade de Valência, na Espanha. São estruturas que só importam porque esses organismos são forçados a sobreviver em ambientes adversos. Mas que não explicam porque eles estão vivos. A bactéria mínima de Venter não tem essas estruturas. Por isso, é capaz de nos ensinar quais os requisitos básicos para sua existência. “Essa compreensão é, provavelmente, o mais próximo que vamos chegar de uma definição de vida”, diz Rosário.
A existência da Syn 3 é resultado de mais de 20 anos de pesquisa. Venter buscava o DNA mínimo desde 1995. Naquele ano, o cientista encomendou a uma comissão de uma universidade americana uma análise das potenciais implicações éticas de uma experiência como essa.
Em 2010, Venter ganhou destaque ao criar uma bactéria em laboratório. Ele e sua equipe montaram, num computador, o DNA de uma bactéria chamada Mycoplasma mycoides - um organismo que já existia na natureza. Eles analisaram o DNA dessa bactéria e descobriam quais elementos químicos o formavam, e em que sequência eles apareciam. Compraram esses elementos químicos em empresas especializadas e remontaram o código com a ajuda do computador. O DNA artificial foi inserido numa célula e vingou. A M. mycoides foi a primeira forma de vida sintetizada por um computador. O novo trabalho de Craig avança nesse processo.
 
O genoma mínimo da Syn 03 pode nos dar pistas sobre o funcionamento da vida (Foto: C. Bickel / Science)
 
Aquela primeira M. mycoides sintetizada em laboratório recebeu o nome de Syn 1. Durante os anos seguintes, Venter e sua equipe se encarregaram de limpar o DNA da Syn 1. Podaram tudo até que ficasse, praticamente, somente o essencial. O trabalho foi árduo porque foi baseado no processo de tentativa e erro. Os cientistas extraíam um gene e observavam o comportamento da bactéria. Se a célula morresse, descobriam que aquele gene era indispensável. “Foi muito mais demorado do que supúnhamos a princípio”, disse Venter. Trabalhos teóricos, no passado, estimavam que um organismo dotado de genoma mínimo deveria ter algo entre 200 e 350 genes. A Syn 3 é maior - tem 473 genes. Venter não pôde cortar todos os elementos supérfluos. Precisou manter genes que não eram importantes para garantir a sobrevivência da Syn 3, mas que eram úteis para que ela se reproduzisse em velocidade adequada para ser estudada. Deu certo - a quantidade de Syn 3 em uma colônia dobra de tamanho a cada 3 horas. “Por isso, esse é ‘um’ genoma mínimo. Não ‘o’ genoma mínimo”, disse o cientista, em tom de brincadeira.
A  Syn 3 é tão mínima que nunca existiria na natureza. “É bastante improvável que um organismo vivo conseguiria sobreviver livre com um número tão pequeno de genes”, diz o biólogo Carlos Acevedo-Rocha, especialista em vida microbiana da Universidade Técnica da Dinamarca. Mesmo assim, ⅓ do DNA da bactéria tem funções desconhecidas. Os cientistas sabem que são genes essenciais, mas não entendem bem o que eles fazem: “Isso é uma mostra do quão complexa é a vida, mesmo nos organismo mais simples”, disse Venter.
Ele agora pensa no futuro de sua criação. A bactéria artificial de 2010 abriu espaço para a ideia de sintetizar microorganismos com função econômica. Na época, Venter falava em criar bactérias capazes de aumentar a eficiência da produção de combustíveis, ou aptas a degradar petróleo derramado no mar. A bactéria de genoma  mínimo, em teoria, facilita esse processo. Os cientistas terão mais facilidade para modificar um organismo mais simples, e torná-lo capaz de executar as tarefas que quiserem. “Como essa bactéria é mais simples, ela também é mais fácil de alterar”, afirmou Daniel Gibson, um dos pais da Syn 3. “A célula com o genoma reduzido pode ser usada como uma espécie de chassi, capaz de incorporar novos elementos e funcões”.
No passado, Venter já foi tido como inescrupuloso por se preocupar com dinheiro: ele aventou a possibilidade de patentear genes. No caso da Syn 3, fez questão de ressaltar que o maior objetivo da bactéria é auxiliar na pesquisa básica - aquela que os cientistas fazem em laboratório e que não tem aplicações claras no mundo real. Essa etapa dos estudos é realizada pela sua fundação, o Instituto Venter para Ciência Básica, que desenvolveu a nova bactéria. Mas Venter também criou uma empresa com fins lucrativos, a Synthetic Genomes. Por lá, ele liberou sua equipe para pensar como fazer dinheiro com a descoberta. “As aplicações econômicas vêm em paralelo”, diz.

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