quinta-feira, 12 de novembro de 2009


Eu sei mas não devia!
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas
ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas
logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se acostumaa acordar cedo de manhã
sobressaltado porque está na hora
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque
não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia!
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai apostando uma dor aqui, um ressentimento ali,
uma revolta acolá.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar nas asperezas
Para preservar a pele.
se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
e poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto
se acostumar, e se perde de si mesmo!
(Clarice Lispector)

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