Você não passou a ser vigiado agora. Você tem sido o tempo todo no últimos anos. Quando, há uma semana, um ex-funcionário da CIA divulgou o projeto PRISM, pelo qual todas as grandes companhias de tecnologia entregam de bandeja dados de todo o tipo sobre seus usuários (nós) ao governo dos EUA, finalmente apareceu algum tipo de protesto. Reações de indignação e surpresa sobre “como pode agora um governo espionar seus próprios cidadãos?” Agora não. Vários governos, há muito tempo, coletam muito mais dados do que sugere o Prism. É o que estudiosos já chamam de “estado de vigilância total”.
A expressão pega uma carona num projeto da época do ex-presidente George W. Bush chamado “Total Information Awareness”. Ele foi criado — e desativado — em 2003, na esteira da “guerra ao terror”, para coletar todos os dados possíveis sobre todos os cidadãos dos Estados Unidos. Notícia da época, do Guardian: “uma central de servidores que guardará dados dos cidadãos sobre recibos de caixas eletrônicos, tíquetes de avião, remédios comprados, registros bancários, emails, visitas a sites (…)” Bom, dá pra entender por que o programa foi arquivado depois de meses de críticas. Só que muito da legislação paranoica da época “pós-11 de setembro” acabou sendo incorporada. Isso inclui a construção de um Data Center de US$ 1,5 bilhão no meio do deserto de Utah que interceptará e guardará toneladas de dados sigilosos de comunicações de todo o mundo. (Não é teoria da conspiração, o governo anunciou que o centro será inaugurado em outubro).
Parte do lado oculto dessa trama de espionagem em massa veio à tona nos últimos anos. Há duas semanas, vazamentos à imprensa mostraram que uma agência militar do governo dos EUA, a NSA (a mesma do Data Center e do Prism), recebeu dados completos de 3 meses de todas as ligações feitas pela Verizon, a segunda maior operadora de telefonia de lá. Tudo, menos a voz. Seria como se a TIM passasse um relatório detalhado sobre com quem todos os seus usuários falaram, durante quanto tempo, onde estavam, etc — uma quebra de sigilo telefônico, na surdina, para milhões de pessoas ao mesmo tempo.
Ano passado, um relatório pedido pelo Congresso Americano mostrou que o governo requisitou dados de 1,3 milhão de registros telefônicos das operadoras, boa parte em “regime de urgência”, o que dispensa a tramitação normal na justiça. Quem acredita que existam 1,3 milhão de casos de suspeita de terrorismo, põe o dedo aqui. É só a ponta do iceberg, há muitos outros casos registrados, especialmente desde 2003. Uma reportagem recente da revista Wired relata casos espionagem de cidadãos sem autorização judicial pelo FBI pelo menos nos últimos 20 anos.
Muito além dos EUA
Mas não pense que o grande irmão é americano; a espionagem em massa é poliglota. Na Suécia, desde 2008 uma agência do governo pode interceptar legalmente todas as comunicações que passarem pelo país. Na Austrália, 300 mil pessoas tiveram os seus dados espionados e coletados pelo governo no último ano — e agora estudam uma lei para proibir essa prática. No Reino Unido muito se discute sobre como guardar todos os metadados (simplificando os dados do seu sigilo telefônico) dos habitantes.
Registros vazados do wikileaks mostram que a Líbia de Gadaffi comprou um “mecanismo de interceptação de âmbito nacional”. Só saber que existem dispositivos capazes de fazer isso assusta. Na página sobre o caso, o Wikileaks mostra dados de um equipamento vendido pela empresa VASTech, que consegue gravar permanentemente todas as ligações telefônicas de países pequenos. “Há 30 grandes companhias envolvidas em fabricar equipamentos de espionagem em massa para interceptar todas as ligações saindo de um país, todas elas. Os equipamentos podem gravar as conversas automaticamente, identificar pela voz qual o sexo, a situação de estresse e até a faixa etária da pessoa”, diz Julian Assange no site que criou para divulgar o vazamento de apresentações que esses fabricantes fazem de seus produtos aos governos (links embaixo).
O que esses exemplos mostram é que ganha terreno entre os governos dos países uma visão técnica de eficiência. Seja do caso patético da Agência Brasileira de Inteligência espionando os líderes das manifestações pela tarifa às milhões de informações coletadas do mundo inteiro pelo Prism, a lógica é gravar tudo.
Com o barateamento das tecnologias de espionagem e, principalmente, das de armazenamento, é mais fácil gravar tudo de todos para, caso necessário, iniciar uma investigação apenas consultando os arquivos. Aí, ao clique do mouse, pode-se saber com quem a pessoa tem falado, em que momentos, o que tem comprado, se está envolvido em alguma atividade suspeita, etc. Desnecessário dizer que essa prática beira a excrescência moral.
Sob o argumento de proteção dos cidadãos, a opção pelas práticas de vigilância total tem vencido, capturando o máximo de informações possível, o tempo todo. São muitas as questões preocupantes abertas por esse precedente. Além das óbvias — do direito à privacidade, do perigo de as informações serem roubadas, etc — há outras ainda mais preocupantes sobre o uso dessas informações para outros fins que não o combate ao crime. Bancos de dados tão grandes são tentações grandes demais para que ideias que envolvem detecção de padrões sociais e podem levar à discriminação não apareçam.
Texto de Tiago Mali - Jornalista e redator chefe da revista Galileu
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