Em Paris, chegamos à última semana de negociação por um acordo climático que supere o Protocolo de Quioto. O rascunho que começou a semana passada com 1.200 expressões entre colchetes, ou seja, diferentes alternativas de texto para serem escolhidas, já reduziu para cerca de 700 os trechos indefinidos. Porém, são neles que moram os nós históricos das 21 edições da Conferência da ONU sobre o Clima. Nesse sábado, Fabius Laurent, presidente desta edição da Conferência, anunciou os quatro grupos de trabalho que vão conduzir as negociações nesta última semana, tratando os principais desafios para um acordo. E, a ministra do Meio Ambiente no Brasil, foi nomeada para facilitar o mais central deles: a diferenciação de responsabilidades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Enquanto o grupo dos países em desenvolvimento (G-77 e China, incluindo também o Brasil) defende que os países desenvolvidos ponham seus cartões bancários na mesa e assumam o financiamento do acordo climático, apoiando a mitigação e a adaptação nos países em desenvolvimento; os mais ricos fazem outras exigências de volta ao G-77, como metas claras de redução das emissões e transparência ao reportar os avanços. Eles também sugerem no texto que seus compromissos devem se estender a “países aptos para isso”, um recado claro para emergentes como a China, que ainda não tinha uma economia desenvolvida quando a Convenção do Clima foi assinada em 1992, estabelecendo na época a divisão de responsabilidades “comuns, porém diferenciadas” entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Para o G-77, a sugestão de alargar a base de contribuintes para os países que cresceram é um desrespeito à Convenção que originou o processo do acordo climático. É a este nó absolutamente central que se amarram outras definições do processo: as metas dos países, os métodos de transparência e de cobrança dos compromissos, o financiamento para mitigação e adaptação, além do suporte para perdas e danos. E é aí que entra, a partir desta semana, a ministra Izabella Teixeira. Ela vai facilitar a conversa entre os dois blocos, junto à embaixadora de Singapura, Vivian Balakrishnan.
“Pelo protagonismo e pela proatividade que tem assumido nas negociações, é natural que o Brasil ganhe essa responsabilidade”, avalia Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima. Ele
destaca, entre as propostas brasileiras para destravar o impasse, a de progressão das obrigações dos diferentes blocos ao longos dos próximos anos, de forma proporcional às diferenças entre os países hoje, mas convergente no futuro para um mesmo patamar de compromisso climático.
Os outros três grupos de trabalho devem tratar também de jogadas definidoras para o acordo: os meios de implementação (no que se refere a financiamento, tecnologia e construção de capacidades), o nível de ambição (incluindo metas de logo prazo e revisão periódica) e a aceleração das ações entre 2015 e 2020 (período de hiato entre o fim do Protocolo de Quioto e a entrada em vigor do acordo a ser assinado em Paris).
Na estratégia dos diplomatas, resolve-se primeiro o que é mais fácil de obter consenso e deixa-se as grandes questões para a última semana, quando chegam os ministros de cada país. Espera-se que eles tenham mais poder, tanto para barganhar, quanto para decidir o momento de ceder.
Para esta segunda-feira, China, Estados Unidos e Brasil dispensaram o palco e não se inscreveram para os discursos políticos que os ministros podem fazer no início da segunda semana. Para os observadores ouvidos, isso significa que essas delegações estão priorizando, dado o curto tempo, as conversas fechadas nas salas de negociação. Um sinal de empenho pelo acordo.
“Não dá para pontuar uma questão, porque elas estão todas implicadas; são intimamente conectadas”, explicou o embaixador brasileiro Antônio Marcondes em entrevista coletiva à imprensa na última sexta. Raphael Azeredo, um dos negociadores que lidera a delegação brasileira junto a Marcondes, ajudou com uma metáfora. “É como aqueles jogos em que, ao se resolver um encaixe, todos os outros começam a se arrumar automaticamente. Não é um quebra-cabeças em que as peças são trabalhadas isoladamente.”
O que Azeredo traduz como jogo é explicado pela Teoria da Complexidade, segundo a qual um sistema é tão complexo quanto maior é a quantidade de elementos e de interações entre eles. “O número de colchetes reflete a complexidade do acordo”, destacou Marcondes. Longe de parecer um quebra-cabeças, o jogo do acordo climático pode ser mais inspirado pelo xadrez, só que em um tabuleiro que caibam 154 peças, considerando que esse foi o número de chefes de Estados presentes para a abertura da Conferência na semana passada – um número recorde na história de conferências sobre o clima da ONU. Como no xadrez, só é possível entender um movimento olhando para o tabuleiro inteiro. “Muitas vezes o que o país defende em uma negociação não parece ter muita implicação ali, mas muda as condições da conversa em outra sala”, analisa Rittl. “Então, só é possível assimilar a movimentação de um bloco quando se olha o todo”, conclui.
Além dos posicionamentos em bloco, as outras negociações que acontecem entre os países para além da questão climática tornam o tabuleiro ainda mais complexo. “Interesses geopolíticos vão se refletir aqui. Ninguém vai trazer para a mesa, mas estão presentes nas negociações”, lembra Rittl. “O Obama aproveitou sua vinda para conversar com o presidente da França e não falou só sobre clima. Com certeza discutiram os atentados terroristas, a situação na Síria e os posicionamentos dos dois países”, exemplificou. Daí o descolamento entre os discursos políticos que advogam por um acordo climático e as posições menos ambiciosas nas mesas de negociação. “Alcançar um resultado que evite que os países-ilha submerjam é menos importante do que garantir que as economias dos desenvolvidos não sejam ultrapassadas pela China”, arremata Rittl. Nos bastidores da COP, as delegações falam com tranquilidade sobre a impossibilidade de se comprometer com o limite de aquecimento global de 1,5oC, como pedem os países-ilha. “Não vamos perder tempo discutindo o que os cientistas já mostraram não ser mais possível”, afirmou em conversa um dos negociadores, sem ar de gravidade.
Todos querem um acordo – pelo menos é o que todos os lados repetem. Para um dos observadores brasileiros, o clima de tranquilidade no qual os porta-vozes discursavam e conversavam também informalmente no último sábado pode ser um sinal, nada tranquilo, de que já existiria um consentimento em torno de um acordo pouco ambicioso. Tudo para não se repetir o fracasso de Copenhague, em 2009, cujo documento final não foi ratificado por todos os países.
Já para o observador inglês Michael Jacobs, da New Climate Economy, os dois cenários, de alta e baixa ambição, ainda são igualmente possíveis nesta fase. “Já conseguimos ver o formato de um acordo quando olhamos para o rascunho; resta esculpir sua face”, ele compara.
Certo de que sairemos de Paris com um acordo assinado, Rittl não espera um documento que garanta obrigações para os países, mas é preciso dar direção a cinco questões-chave: a definição do limite de aquecimento médio global (hoje previsto para 2oC, sob forte protesto dos países-ilha); uma referência à descarbonização até 2050; clareza na diferenciação de responsabilidades entre os países; processo de na diferenciação de responsabilidades entre os países; processo de revisão e verificação e, por fim, comprometimento com a adaptação às mudanças climáticas que virão. “O que precisa sair daqui é a definição de um processo”, esclarece. Aí sim, segundo ele, vai se organizar o tabuleiro para receber os compromissos das peças do xadrez.
*Ana Carolina Amaral é jornalista formada pela Unesp, mestra em Ciências Holísticas pelo Schumacher College (UK) e moderadora da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental
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